domingo, 28 de fevereiro de 2010

CAPÍTULO 6 - As Razões de Nossos Erros

AS RAZÕES DE NOSSOS ERROS


Introdução


Neste texto pretendo são discutidos alguns aspectos de um interessante debate que vem se desenvolvendo entre alguns filósofos e cientistas sociais contemporâneos. Trata-se da questão que pergunta pelas conseqüências da existência do diabo, ou de um agente do erro, para nossas teorias sobre o conhecimento humano. Para colocar a questão mais claramente, quais as implicações epistemológicas de se cogitar sobre a hipótese da existência de algum agente de ignorância, ou de uma força personalizada que conspire contra nosso conhecimento e tente nos fazer errar? Se o diabo epistemológico existe, quem tem medo dele? E ainda, que conseqüências esse medo pode produzir?

O exame de alguns exemplos de como se tem cogitado sobre essa questão parece acolher a idéia de que existem dois pontos de vista. De um lado há os que temem a existência do diabo epistemológico. Estes, de uma forma geral, apóiam-se na idéia que somente uma razão humana dogmática seria capaz de exorcizar "o demônio epistemológico". De outro lado, há os que não se deixam intimidar pela existência de forças maléficas. Neste texto se argumenta que, ao conceber a razão humana como instrumento limitado de conhecimento, esta última posição acaba por identificar o sujeito que conhece com o próprio diabo. Deixando, portanto, de existir qualquer razão para temê-lo.


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Os mais antigos textos que conhecemos nos permitem concluir que os gregos não associavam o conceito de personalidade com o conceito de Deus. O uso contemporâneo da palavra "Deus", como um nome próprio, isto é, como o nome de um ser pessoal, está associado à tradição cristã.

A visão homérica, assim como aquela que se supõe tenha sido uma opinião comum entre os gregos no período Pré-Socrático, não concebe a intervenção de um poder divino no universo como uma efetiva ação de um ser pessoal. A palavra "teós" é usada no sentido de ação de algum poder divino anônimo e impessoal. Esse mesmo caráter impessoal das forças divinas pode ser identificado na lenda dionisíaca e órfica sobre os Titans. Segundo a mitologia grega, em sua interpretação órfica, Zeus, a quem os gregos reconheciam como o legislador da presente ordem no mundo, e não como o único Deus, engoliu Phanes com sua criação, e criou um novo mundo. Dionisios, filho de Zeus, foi morto e comido pelos Titans, terríveis filhos da Terra. Zeus então os destruiu com um raio. Das suas cinzas foi criada a raça humana, a qual, desta forma, combina um elemento terráqueo (titânico) e outro celeste (dionisíaco) em sua natureza. Assim a raça humana necessita ao mesmo tempo, de conter seu caráter maligno e cultivar sua natureza benigna.

O aspecto importante desta análise é que os Titans não se constituíam no mal em si mesmo. Porém, eles expressavam a manifestação de um malévolo poder divino.

Assim, na mais antiga tradição grega, o conceito de "divino" é genérico. Isto é, ele inclui a idéia de "bondade" e de "maldade" simultaneamente. Com isto se pode dizer que, na tradição grega, o poder divino em si mesmo, não é nem bom nem mau. Ele pode, de fato, ser o bem ou o mal.

A tradição cristã parece se desenvolver em direção completamente diferente. Partindo do princípio de que Deus, em sua própria natureza, é a absoluta e infinita bondade, coloca fora de Deus a origem do mal. Nessa tradição o mal é personalizado em um espírito mau. Ele terá, a partir de então uma identidade e um nome: o diabo.

A Bíblia estabelece que o diabo é o espírito supremo do mal. Creio que se pode dizer que no Velho Testamento existe pouca referência à figura do diabo. Contudo, sua participação na queda do homem, é suficientemente clara para expor e revelar sua natureza de tentador da raça humana.

A tradição cristã a respeito do diabo pode ser sumarizada ao se dizer que homens e anjos foram criados para a visão beatifica. Contudo, nenhum deles a possuiria sem ser previamente testado. Os anjos foram criados como espíritos puros, sendo, portanto, premiados com uma vida sobrenatural. Porém, alguns deles, liderados por Lúcifer, Belzebu ou Satan, fracassaram ao serem submetidos à prova. Foram tomados por certa forma de orgulho. Após sua queda, o diabo teria aumentado o seu poder, na medida em que é também responsável pelo pecado do homem.

Assim, o diabo aparece claramente como o adversário, o espírito tentador do homem. Com a vinda de Cristo, o primeiro efeito da Redenção foi o perdão do Pecado de Adão e a destruição do poder do diabo sobre os homens. Porém Deus permite que o diabo tente o homem. Não mais diretamente, mas através de sua natureza.

Para a tradição cristã existe a distinção entre Deus e o diabo. O fundamento dessa distinção é a idéia de que Deus é bondade em Sua própria natureza, e o diabo é o mal. Deus e o diabo são personificações dessas forças distintas. Existe um ser bom, e ele é Deus; existe um ser mau, e ele é o diabo.

Portanto, existe uma importante distinção entre o conceito de "mal" na tradição grega e na tradição cristã. Essa distinção tem profundas influências sobre o entendimento do poder do diabo sobre os homens.

Na tradição grega não existe um princípio de individualização para o mal. O mesmo ser que faz o bem, de igual forma também faz o mal. Na tradição cristã, o mal tem sua própria existência. Ele é um ser independente de Deus, e independente do homem. Assim, essa tradição implica na idéia de que o mal tem sua origem em um ser distinto do homem. Existe um ser que conspira contra os homens.

Desta forma, na tradição grega o mal é o demônio que temos dentro de nós. Enquanto que, na tradição cristã o mal é um ser fora de nós. E esse ser é o diabo.

Tudo isto é posto para se concluir que existem algumas relações entre essas tradições e o desenvolvimento de diferentes pontos de partida epistemológicos. Assim, parece que a tradição grega assumindo a existência do demônio interior (daimónion) está na base da Cosmologia de Empédocles e da Moral de Sócrates. Por outro lado, a tradição cristã está implicada na teoria do conhecimento de Descartes e influencia, fortemente, o desenvolvimento da Moderna Epistemologia.


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A introdução da idéia de "demônio" ("daimónion") na Filosofia Grega se deu pela primeira vez com Empédocles (entre 483-423 A.C.). Em sua filosofia ele estabeleceu a distinção entre duas diferentes classes de realidades divinas. Amor e Conflito são as forças reais responsáveis pela combinação e separação periódica de outros quatro deuses que compõem as coisas reais. Todas as coisas são combinação e separação de Fogo, Ar, Terra, ou Água. Conflito é o poder causal que encoraja e faz acontecer o mal. Isto significa que o mal é causado por Conflito. Assim, Empédocles usa a noção da existência de um princípio real para o mal. Com esse caráter, o mal se toma um princípio explicativo da Cosmologia de Empédocles, e ao mesmo tempo preserva a suposta natureza divina de Empédocles e de seu sistema.

Ray Kenneth, parece concordar com essa análise. Ele, porém, leva avante esse ponto ao insinuar que introduzindo a hipótese do "daimónion", Empedócles estaria pretendo justificar sua própria situação de um "deus caído dos céus". Em sua análise R. Kenneth sugere que a hipótese do "daimónion" na filosofia de Empédocles, teria ainda a finalidade de justificar o caráter divino e redentor dessa mesma filosofia. Conflito apresenta-nos um novo problema, e uma segunda surpreendente inovação, pela qual Empédocles é responsável.(1)

Sócrates parece ter recorrido à idéia da existência de um demônio ("teión te kai daimónion", ou "daimónion oikión") para justificar seus fundamentais valores morais. Esse demônio que é apresentado como misterioso em sua origem, não deixa de ser, contudo, racional e compreensível em seus argumentos.

Em sua Apologia (31 d.), são postas na boca de Sócrates as seguintes palavras: "Vocês me têm ouvido falar, em diversos momentos e em vários lugares, de um oráculo ou sinal sobre-humano, o qual vem a mim, e essa é a divindade que Mileto ridiculariza na sua acusação. Esse sinal, o qual é uma espécie de voz, veio pela primeira vez a mim quando eu era criança; de tempos em tempos ele me proíbe de fazer alguma coisa, sem contudo nunca ordenar coisa alguma".

As teses sobre o significado do "daimónion oikíon" na filosofia de Sócrates não serão tratadas aqui. Contudo, o que aqui se propõe é suficiente para sugerir que Sócrates afirmava a existência de um ser que falava em seus ouvidos. O assunto dessas comunicações eram afirmações sobre questões fundamentais da moral. Sócrates parece ter entendido que ser um intérprete desse demônio era o último sentido de sua filosofia e de sua vida.

H. Kesters parece concordar com essa idéia quando diz que Sócrates, na maior parte das vezes, era interpretado por seus discípulos e admiradores, como dotado de uma missão colocada nele por alguma força exterior. Sócrates era tido por alguém que se considerava como um enviado ou um intérprete de um poder, demônio ou outro ser. Como alguém que tinha recebido uma missão imperiosa através de sua própria filosofia.(2)

O que tudo isso indica é que a tradição grega de um demônio impessoal e indeterminado em sua própria natureza parece ter sido preservada nas filosofias de Empédocles e Sócrates.

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R. Descartes teria sido o responsável pela introdução da hipótese da existência do diabo na Moderna Epistemologia. Ele fez isso quando em suas "Meditações sobre a Filosofia Primeira", estabeleceu a famosa hipótese do "malin genie", ou demônio maligno. Trata-se da suposição de que existe um gênio maligno, isto é um espírito mau, extremamente poderoso e inteligente, cuja tarefa é enganar os homens. Em suas próprias palavras: "Vou supor, então, não que existe um Deus extremamente bom, e fonte da verdade; mas que existe um mau espírito, o qual sumamente poderoso e inteligente, e que faz todo esforço no sentido de enganar-me. Vou supor que o céu, o ar, a terra, as cores, as formas, os sons e todos os objetos externos são meros sonhos imaginários, por meio dos quais ele coloca armadilhas para minha credulidade. Vou considerar-me não tendo mãos, nem olhos, nem carne, nem sangue, nem sentidos, mas tendo somente uma falsa crença de que tenho todas essas coisas... Não irei ceder a qualquer falsidade, nem deixar-me ser dominado por esse enganador, por mais poderoso e inteligente que ele possa ser. Porém esse plano é problemático, e a preguiça conduz-me de volta à vida ordinária".(3)

Da maneira como Descartes coloca a questão, somente nas aparências a suposição do "malin genie" estaria associada com desorientação, desconfiança e cepticismo. Parece-me que Descartes usa a hipótese do "genio maligno" para escapar à condição de incerteza. Essa hipótese é usada como um instrumento para conquistar a certeza e a verdade. A escuridão e as trevas que parecem estar associadas à condição do sujeito cognoscente em Descartes, são, de fato, meros instrumentos de seu método psicológico.

Existe um interessante texto de Descartes, em uma de suas cartas dirigidas ao Curador da Universidade de Leyden, onde ele responde a um de seus oponentes. Nessa carta ele insiste na idéia de que a suposição do "malin genie" é um recurso de sua filosofia contra o ceticismo e o ateísmo. Ela não é, portanto, uma hipótese de conteúdo moral, mas exclusivamente epistemológico. Isto é, ela não implica a idéia de que Deus seria enganador, pois que teria criado o "malin genie". Também não significa que todo conhecimento humano é impossível. Ao contrário, essa hipótese é utilizada para estabelecer o fundamento da certeza de nosso conhecimento.(4)

Na filosofia de Descartes, a hipótese do "malin genie" é apenas um recurso para a demonstração da tese de que Deus garante a veracidade de nossas idéias. Deus existe e Ele garante que a razão humana é instrumento de verdade e certeza. Descartes, portanto, parece estabelecer a existência do "malin genie" como uma mera suposição, como uma simples hipótese. Contudo, sua epistemologia inteira é baseada na certeza da existência e veracidade de Deus.

Descartes parece expressar, na Moderna Epistemologia, o desenvolvimento da tradição cristã a propósito do diabo. Parece que a hipótese do "malin genie" de Descartes nada mais é do que a suposição da existência do "diabo epistemológico". Descartes teria, simplesmente, estendido para a epistemologia, a hipótese que o diabo da tradição cristã pudesse também interferir nas nossas idéias. O diabo não mais como agente do mal, mas como princípio do erro.

A tradição cristã sobre o diabo parece estar presente, com todos os seus ingredientes, na epistemologia de Descartes. A idéia de que podemos supor a existência de um ser que é o supremo mal em sua própria natureza; e que conspira contra a razão humana enquanto instrumento de verdade e certeza, posto no homem pelo próprio Deus. Na tradição cristã a existência do diabo concilia-se com a responsabilidade moral dos indivíduos, pois que ficam estabelecidas formas de controle da ação maléfica do supremo mal. O diabo pode ser exorcizado. Podemos expulsar o demônio de dentro de nós. Semelhante situação acontece na epistemologia Cartesiana. O "malin genie" também pode ser exorcizado. Pode ser expulso de dentro de nós. A razão humana, garantida por Deus, é o instrumento eficaz desse exorcismo.

A epistemologia de Descartes seria insustentável sem a idéia de que o "malin genie" pode ser exorcizado. A hipótese da existência de um "diabo epistemológico" coloca as teorias do conhecimento diante de uma bifurcação. Ou colocamos esse diabo dentro de nós, e nos identificamos com ele. Ou o colocamos fora de nós, e então necessitamos de um instrumento, suficientemente misterioso para exorcizar o poder do diabo sobre nós.

Se colocarmos o diabo dentro de nós, seremos obrigados a conviver com as conseqüências que ele produz. Seremos condenados à eterna danação da possibilidade do erro, e ao sofrimento de possuir uma razão limitada e incerta. Em contrapartida à segunda solução, seremos obrigados a viver rituais místicos. Teremos que basear todo nosso conhecimento em princípios de fundamentação desconhecida. Seremos obrigados a confiar que Deus, de alguma forma, resolverá essa questão. Parece-me que Descartes optou por esse segundo caminho. Se ele de fato admitisse a existência de um "malin genie", ele teria que suspeitar da razão humana. Isso, porém, certamente não combinaria com seu otimismo epistemológico.


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E. Gellner desenvolve em seus trabalhos uma interessante teoria sobre a existência e as formas do diabo nas Modernas Teorias do Conhecimento. Ele chega mesmo a afirmar que é necessário e perfeitamente justificável o pressuposto de que existe um oponente organizado e complicado que intervêm no sentido de se opor ao sucesso de nossas idéias.(5)

Assim como Descartes, E. Gellner também não cogita do diabo como um agente que atua através das ações humanas. A hipótese da existência do diabo é, desta forma, afastada de suas implicações morais. Ele parte da constatação que existe uma diferença básica entre uma situação em que um indivíduo obtém resultados inesperados para suas ações, e um indivíduo que examina as suas características cognitivas. Essa diferença é que, no primeiro caso o indivíduo geralmente não necessita pressupor que existe algum agente hostil por detrás de suas ações. Sua situação não implica necessariamente no fato que alguma força conspira contra os resultados que pretende conseguir. No segundo caso, contudo, a hipótese de um diabo conspirador é perfeitamente justificável.(6)

Dessa forma, a hipótese do "daimon" é de natureza epistemológica. Assim, em seu argumento, Descartes é apresentado como alguém que estabeleceu uma nova interpretação do papel do diabo na Moderna Epistemologia. Descartes teria invocado o demônio como uma simples hipótese, para ajudá-lo a escapar da condição de incerteza. Essa maneira de colocar a questão gerou nas epistemologias pós-cartesianas a certeza que o diabo existe.

E. Gellner argumenta que todas as correntes contemporâneas em epistemologia assumem que o diabo existe. Porém, de uma forma geral, ele é desconhecido em sua natureza. Não sabemos ao certo se ele é malévolo ou benigno. Alguns nos asseguram que ele nos escraviza, enquanto outros afirmam que ele é apenas um agente provocador. A base do problema, porém continua a mesma. Isto é, sabemos que nosso pensamento, nossos conceitos, nossos esquemas mentais, nossas palavras são controladas por mecanismos que não conhecemos. Como conseqüência disso, não podemos confiar, sem reservas, em conhecimentos cujos mecanismos controladores desconhecemos. O fato é que não conseguimos penetrar no processo de interpretação de nosso próprio conhecimento.(7)

Após Descartes, o diabo passou a ser procurado em diferentes lugares. Ele tem sido identificado em formas diversas, tais como a mente humana, a história, a linguagem, a evolução biológica, o inconsciente individual ou coletivo, a sociedade, a classe social, e outras entidades. Cada uma dessas variedades de diabos epistemológicos tem sido ainda caracterizada em diferentes aspectos de sua natureza .(8)

Toda a estrutura da Moderna Filosofia, após Descartes, é passível de ser reconstruída a partir de um diagrama com dois braços. De um lado poderiam ser colocados os "colaboracionistas". De outro os "oposicionistas".

O argumento básico dos "colaboradores" do diabo, seria que o demônio é poderoso e impossível de ser controlado. Contudo, se ele controla todo o nosso pensamento, e todo o pensamento dos demais seres humanos, não existe problema nenhum em sua existência. Nada pode ser concluído da análise dessa condição. Não somente seria impossível escapar dessa situação, como não existiria ganho algum em ser supostamente libertado. Quanto aos "oposicionistas", sua posição se apóia na idéia de que, se podemos suspeitar de que o diabo existe, então devemos encontrar meios de atuar contra ele. Precisamos descobrir qual a ordem pela qual ele se manifesta, que recursos usa para se escamotear. Necessitamos de encontrar contra-medidas para nossa proteção. Precisamos de recursos para controlar sua ação.(9)

Portanto, é certo que existem inúmeras posições intermediárias entre esses dois pontos extremos. Contudo, o que se pretende estabelecer com essa análise é que nenhuma epistemologia moderna pode ser construída sobre o pressuposto de que o problema do diabo é irreal.


Conclusão


Neste ponto, novamente se põem as questões iniciais deste texto. Quais sejam: Quem tem medo do diabo? E ainda, que conseqüências esse medo produz?

Certamente aqui não se fez uma análise exaustiva de como a questão do "diabo epistemológico" vem sendo discutida através dos tempos. Porém creio que temos exemplos suficientes que corroboram a tese de E. Gellner de que há "colaboracionistas" e "oposicionistas" do diabo. Há os que temem o diabo, tomados aqui como "oposicionistas", assim como há os que não o receiam, os quais, de uma forma geral, poderiam ser considerados como "colaboracionistas". Descartes e os seguidores da tradição cristã seriam mais confortavelmente entendidos como "oposicionistas". A tradição grega Pré-Socrática, Sócrates, e aqueles que se inspiram em sua epistemologia, exemplificariam a categoria dos "colaboracionistas".

Parece que a "teoria do diagrama" de E. Gellner tornou possível separar os que temem e os quê não temem o diabo. O que não fica claro, porém, em sua análise são as conseqüências que a medo do diabo epistemológico pode produzir, - e que, de fato, tem produzido.

As epistemologias "oposicionistas", de fato, correspondem a uma atitude mais imediata que se segue à descoberta de que alguma coisa conspira contra nossas idéias. Contudo, as conseqüências que essa atitude produz na teoria do conhecimento são das mais nefastas possíveis. Pois que, o medo do "diabo epistemológico" resulta na proposta de formas misteriosas de exorcismo de sua influência maligna sobre a razão humana. E isto implica na idéia que é possível uma razão exorcizada, isto é, uma razão que, de alguma forma, possa ser expurgada de seus erros, sendo, portanto, instrumento da mais pura verdade. O medo do diabo está na própria raiz de todo otimismo epistemológico. Ou colocando mais claramente a questão, a conseqüência primeira de toda epistemologia "oposicionista," é a atitude otimista que passa a fundamentar todas suas pressuposições epistemológicas.

Parece surpreendente a sugestão que epistemologias "oposicionistas" ao "diabo epistemológico", que são exatamente as que o temem com mais fervor, resultem em teorias fundamentadas em otimismo. Contudo, essas epistemologias escondem entre suas conseqüências uma atitude "recuperacionista". Isto é, elas concluem incontinentemente pela recuperação do poder de verdade da razão humana. E o mais importante, essa recuperação sempre se processa por um passe de mágica, ou, mais propriamente, por um processo de exorcismo.

Contra o otimismo epistemológico se pode argumentar que ele implica em uma interpretação dogmática e autoritária de razão humana. O otimismo epistemológico é o pressuposto sobre o qual se constroem as teorias que concebem a razão humana como instrumento de verdade e certeza.

Esse conceito de razão como um instrumento de verdade e certeza tem conseqüências epistemológicas. Ele resulta numa forma dogmática de razão humana. Contra esse conceito dogmático de razão humana se pode argumentar que está associado a um entendimento da racionalidade humana o qual resulta em formas variadas de autoritarismo e dominação entre os sujeitos que conhecem. O autoritarismo, a dominação são resultados indesejáveis de nossas ações. Isto significa que não podem ser tolerados por razões morais. Se desejamos evitar o autoritarismo e a dominação, então faz-se necessário suprimir as ações que os produzem.

Porém, o argumento contra os “oposicionistas” não é somente de natureza moral. Existem hoje sérias razões para suspeitarmos da falsidade do princípio “recuperacionista". Somente para citarmos uns poucos exemplos, considere-se o fato de que esse princípio resulta em teorias de pobre conteúdo explicativo. Ainda em teorias que são incapazes de conceber o conhecimento científico como algo dinâmico e evolutivo. E ainda, o princípio do otimismo epistemológico implica no pressuposto de que é necessário justificar as nossas idéias, e ao mesmo tempo, não consegue satisfazer esse princípio. O número de dificuldades poderia ser longamente entendido.

Existe uma forma de se interpretar o "diabo epistemológico" que evita grande parte dessas dificuldades, e que certamente impede as conseqüências nefastas da posição alternativa. Essa posição consiste em interpretar a existência do diabo epistemológico seguindo a tradição grega, isto é, tomando-o como um poder impessoal dentro do próprio homem. Ele seria, de fato, o elemento Titânico na natureza humana.

Conforme essa teoria, em todas as formas em que somos capazes de identificar o diabo, podemos assumir que o diabo somos nós. Assim, todas as entidades que pudermos identificar por detrás de nossas ações e nossas idéias, somente têm sentido na medida em que pudermos entendê-las como maneiras de conhecer e de agir do ser humano. A dúvida, o pensamento, a história, a linguagem, o inconsciente, a sociedade, as classes sociais, a ideologia, a ciência, a religião, a cultura, enfim tudo isso deve ser assumido como sendo resultado das ações.humanas.

Certamente, isso não resolve em definitivo a questão. Certamente a possibilidade do demônio nos conduzir ao engano continua a existir. A qualquer momento podemos nos surpreender com a descoberta de que o diabo epistemológico realmente existe. Enquanto isso não acontece, a melhor posição consiste em tirar alguma vantagem daquilo que somos capazes de melhor construir sobre essa hipótese. Essa é a razão pela qual a forma de tratar a questão aqui esboçada, se não exorciza o diabo, pretende tirar a melhor conseqüência da difícil situação que cogitar sobre sua existência nos coloca. A questão de se cogitar se somos nós mesmos ou se somos algum outro ser, não é de fato uma falsa questão quando se consegue dar-lhe ua resposta. E principalmente quando essa resposta pode ajudar a solucionar outras questões. Parece razoável dizer que a questão sobre as formas em que se manifesta o medo do diabo epistemológico nos permite explorar as conseqüências de uma posição otimista em epistemologia.

Somente aqueles que se identificam com o diabo estão realmente preparados para entender que ele existe. Quanto aos demais, tratam-no como se fosse apenas urna hipótese. E esses é que poderão algum dia se surpreender.







NOTAS E REFERÊNCIAS



1 . Kenneth, Ray Hack; "God in Greek Philosophy to the Time of Socrates", London, Prinecton University Press, 1931, p. 102.

2. Kesters, H.; "Kerygmes de Socrate", Quebec, Press Universitaire Laval, 1966, pp. 22-23.

3. Descartes, R.; "Philosophical Writings", London, Nelson's University Paperback, s.d., p. 65.

4. Descates, R.; "Philosophical Letters", Oxford, Clarendon Press, 1970, pp. 219/220.

5. Gellner, E.; "Legitimation of Belief", London, Cambridge University Press, 1974,p.15.

6. Gellner, E.; op. cit., p. 14.

7. Gellner, E.; op. cit., p.16.

8. Gellner, E.; op. cit., p. 17.

9. Gellner, E. op. cit., p. 18.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

CAPÍTULO 5 - O Racionalismo Crítico e a Defesa da Racionalidade

O Racionalismo Crítico e a Defesa da Racionalidade




“...o conflito entre o racionalismo e o irracionalismo tornou-se a mais importante questão intelectual e talvez moral, de nosso tempo. (Popper, 1945, vol.2, p.224)


Introdução

A simples evocação da expressão racionalismo crítico põe o problema de delinear os limites entre as posições racionalistas e irracionalistas. Aqui se pretende examinar a questão do confronto entre duas perspectivas epistemológicas, ou duas formas de entender o princípio fundamental que permite avaliar os limites do conhecimento humano. Trata-se da refrega entre racionalismo e irracionalismo.
De um lado estão aqueles que defendem o princípio da racionalidade em sua forma compreensiva ou extremada, que poderia ser expresso na afirmação que ‘no mundo do conhecimento humano, somente se pode aceitar aquilo que pode ser defendido por meio de argumentos ou da experiência’. De outro lado estão os irracionalistas que sustentam o princípio da irracionalidade humana, isto é, que ‘no mundo do conhecimento humano devemos aceitar idéias ou teorias que sejam expressivas das emoções e paixões humanas’.
Aqui se pretende argumentar em favor de duas posições. Primeiro, que o racionalismo extremado é logicamente insustentável. Pois, o princípio da racionalidade não é demonstrável de forma argumentativa ou empírica. Segundo, que o irracionalismo tem contra si objeções epistemológicas e morais. Pois, o princípio da irracionalidade não fundamenta uma epistemologia irracionalista; ademais, o irracionalismo é tolerante com a violência e com algumas outras imperfeições morais.
Acompanhando as sugestões de Karl Popper, aqui se pretende apresentar algumas teses do racionalismo crítico, ou irracionalismo mitigado, que se constrói a partir do princípio que ‘no mundo do conhecimento adotamos a fé irracional na razão, adotamos igualmente uma série infinda de pressupostos irracionais e examinamos criticamente as suas conseqüências através de argumentos e experiências’.(Popper, 1945, p. 231)
O texto que segue está dividido em três partes. Na primeira pretende-se esclarecer alguns conceitos básicos e examinar a insustentabilidade do princípio da racionalidade em sua forma extremada ou compreensiva.
Na segunda parte serão apresentadas as razões da alegação que o irracionalismo não oferece uma epistemologia irracionalista. Seguramente isto não é interpretado como uma dificuldade pelos irracionalistas que não vêem vantagem em teorias epistemológicas racionais. Entretanto, prevalece o fato que não se dá uma epistemologia irracionalista. Em que medida isso, de fato, se constitui em uma dificuldade para os sistemas especulativos, fica para ser resolvido. Será ainda argumentado que o irracionalismo não produz um sistema de objeções à violência, assim como, induz a posições que resultam na defesa de regras de conduta insustentáveis de um ponto de vista moral.
Na terceira parte serão apresentados os fundamentos de uma epistemologia construída a partir do princípio do racionalismo crítico ou irracionalismo mitigado. O realismo de senso comum, ou a alegação que os fatos não tem seu fundamento em nossas mentes, o objetivismo, isto é, a afirmação que nossas teorias têm sua realidade independentemente de nós e o indeterminismo, ou seja, a teoria que podemos manipular alguns corpos físicos de acordo com nossas vontades, esses três ingredientes são necessários para compreender o funcionamento apropriado do método crítico.
O racionalismo crítico, ou irracionalismo mitigado propõe, ainda, a defesa da teoria que o conhecimento humano é o instrumento de que dispõe o ser humano para evitar as indesejadas conseqüências irrevogáveis e incontroláveis de nossas ações intencionais e que a adoção da técnica de propostas parciais na reforma social é uma conseqüência direta da aplicação de uma postura racional crítica na vida social.
A título de conclusão se sugere que, a partir da perspectiva do racionalismo crítico, o racional e o razoável não se distinguem. Para um racionalista crítico uma teoria é racional quando resiste ao falseamento após ser submetida a uma série de testes severos no sentido de evidenciar sua falsidade. Uma posição intelectual é razoável quando expressa a teoria que contém maior conteúdo informativo e que teve a melhor performance frente às tentativas de refutação, num determinado momento do tempo. Nesse sentido, as teorias, ou posições intelectuais, não são racionais, ou razoáveis, de forma definitiva.

I

Aqui pretende-se esclarecer alguns conceitos básicos e examinar a insustentabilidade do princípio da racionalidade em sua forma extremada ou compreensiva. De uma forma geral pode-se dizer que o desenvolvimento do pensamento no Ocidente tem sido caracterizado pela ocorrência de momentos onde se configura de forma expressiva o esforço da implementação daquilo que se poderia caracterizar como racionalismo, ou intelectualismo, ou seja, o movimento em favor da adoção do princípio da racionalidade na sua forma compreensiva ou extremada. O próprio surgimento da Filosofia estaria associado aos primórdios desse empenho do ser humano em desfazer-se de interpretações místicas, mitológicas e tribais. (Popper, 1945, p. 136 e Popper, 1963, pp. 136-164)
Entretanto, a própria investigação filosófica tornou-se devedora da postura irracionalista na medida em que alguns sistemas filosóficos adotaram o princípio da irracionalidade e algumas de suas implicações. Na Filosofia Contemporânea, particularmente em pensadores como Bergson, Hegel, Freud, Nietzsche, Wittgenstein instituiu-se um irracionalismo que transforma seus defensores em verdadeiros oráculos preconizadores de uma sabedoria que considera dispensável toda forma de crítica.
O fato é que, para aqueles que se deixam levar por essa atual maré de filosofia irracionalista é lamentável que existam os racionalistas, os quais são genericamente descritos como seres inferiores preocupados tão somente com o lado mecânico das coisas, pobres de espírito que não possuem sensibilidade para os problemas profundos que envolvem o destino humano e defensores do formalismo, uma vez que não possuem capacidade para a produção metafísica que envolve a compreensão dos fundamentos da existência humana. (Popper, 1945, p.229) Disso pode-se depreender que o número de irracionalistas é bem maior do que aquele que pode ser contado numa primeira aproximação.
O embate contemporâneo entre racionalistas e irracionalistas tem na modernidade o caráter de confronto entre correntes filosóficas que se separam de forma radical. Não se trata apenas do confronto entre os defensores do projeto da modernidade, ou da civilização, contra os defensores de projetos alternativos, ou da própria barbárie. Trata-se do enfrentamento entre os que defendem duas interpretações diferentes do próprio projeto moderno de mundo e do debate entre os defensores de interpretações divergentes para o significado e o papel da racionalidade humana no projeto de mundo que se está a construir.
O racionalismo extremo, compreensivo, ou não crítico, defende que a racionalidade humana é expressa na seguinte formulação: ‘no mundo do conhecimento humano, somente se pode aceitar aquilo que pode ser defendido por meio de argumentos ou da experiência’. Esse mesmo princípio da racionalidade extrema, em sua formulação negativa, afirma que toda pressuposição que não possa ser apoiada por argumento ou por experiência deve ser abandonada.
Popper argumenta que, conforme a formulação acima, o racionalismo extremo é inconsistente.
Ele diz: “Portanto, é fácil ver que esse princípio do racionalismo não crítico é inconsistente; pois, uma vez que ele não pode ser apoiado por argumentos ou pela experiência, isso implica que ele próprio deveria ser descartado. (Ele é análogo ao paradoxo do mentiroso, isto é, à sentença que afirma sua própria falsidade.) O racionalismo não crítico é, portanto, logicamente insustentável; e desde que um argumento puramente lógico pode demonstrar isso, o racionalismo não crítico pode ser derrotado pela arma por ele próprio escolhida, isto é, o argumento”.(Popper, 1945, vol 2, p.230)
O argumento posto acima significa que as pressuposições são necessárias em toda estrutura argumentativa. Entretanto, não é possível satisfazer a exigência que todas as pressuposições sejam baseadas em argumentos. Aqueles que argumentam de forma compreensiva e pretendem que os sistemas argumentativos comecem com poucas pressuposições e que estas possam ser racionalmente demonstradas, o fazem de forma paradoxal ao apoiarem sua posição na pressuposição que é possível começar com poucas pressuposições e que elas necessitam ser racionalmente demonstradas. Entretanto, eles não apresentam argumentos em favor de sua própria pressuposição. Enfim, eles exigem demonstração de todas as pressuposições, entretanto, não demonstram sua própria pressuposição fundamental. Isso, certamente, é paradoxal.
O que tudo isso significa é que o racionalismo extremo, compreensivo, ou não crítico é insustentável de um ponto de vista lógico.
Entretanto, os racionalistas críticos estariam preparados para preferir o racionalismo extremado ao irracionalismo. Isso por duas razões. Primeiramente o racionalismo extremo está mais próximo do racionalismo crítico do que o irracionalismo. Falta ao racionalismo exagerado uma postura mais modesta e auto-crítica que advêm do reconhecimento de seus limites. Em segundo lugar, o racionalismo extremo pode ser considerado inofensivo se comparado com os efeitos que podem advir de um irracionalismo exagerado, posto que a dificuldade mais séria que possui o racionalismo exagerado consiste na sua inconsistência lógica, não lhe sendo imputáveis objeções de natureza moral.

II

Nesta segunda parte serão apresentadas as razões da alegação que o irracionalismo não oferece uma epistemologia irracionalista. Será ainda argumentado que a escolha entre o racionalismo e o irracionalismo tem implicações de natureza moral. A decisão de escolher uma ou outra, ou ainda uma terceira posição, que de alguma forma seja modificação das anteriores, é uma questão de escolha de natureza moral. Aqui será argumentado que essa escolha afetará profundamente nossa atitude para com os outros seres humanos e para com os problemas de toda a humanidade.
Conforme se tentou demonstrar acima, o racionalismo em sua forma exagerada não tem sustentação lógica sendo, portanto, o irracionalismo expresso em um princípio logicamente superior ao racionalismo não crítico. O princípio da irracionalidade, que implica na possibilidade de recusar todas, ou algumas, formas de argumentos, pode ser mantido sem que ao fazê-lo o interlocutor esteja cometendo qualquer tipo de inconsistência lógica. Entretanto, essa superioridade fica desde logo comprometida pela impossibilidade do irracionalismo oferecer fundamento para uma teoria epistemológica que demonstre os limites e as possibilidades do conhecimento humano.
Uma teoria epistemológica seria constituída por uma série de teses, ou interpretações, para as quais pudessem ser oferecidos argumentos lógicos e experimentos. Seriam posições defensáveis de um ponto de vista argumentativo. Entretanto, argumentos racionais e controle empírico não têm qualquer efeito sobre aqueles que recusam o princípio da racionalidade, em qualquer uma de suas formulações. Certamente que se poderia reunir um conjunto irracional de informações com objetivo de propor soluções para os problemas epistemológicos. Aquilo que por ventura viesse a ser considerado uma epistemologia irracionalista seria um conjunto de sentenças aforismáticas, proverbiais, ou oraculares, sem qualquer tipo de estrutura argumentativa. Resta saber de que forma uma suposta epistemologia irracionalista seria um instrumento confiável de interpretação dos limites e possibilidades do conhecimento humano.
A adoção do princípio da racionalidade ou do princípio da irracionalidade tem conseqüências que afetam profundamente as nossas atitudes para com os outros seres humanos de uma forma geral. (Popper, 1969, p.292) Isso significa que a escolha da adoção de um princípio ou outro tem uma fundamentação de natureza moral. (Popper, 1945, p.232) A escolha da adoção do princípio da irracionalidade significa a opção por um princípio que não preconizará a necessidade de fundamentação racional para as condutas humanas, uma vez que os agentes não estão submetidos a nenhum conjunto de regras de consistência. Isso significa que os agentes não estão obrigados a oferecer qualquer tipo de argumentação que justifique as condutas adotadas nas diferentes situações. É certo que o irracionalismo pode ser combinado com a escolha de práticas associadas à crença na paz, na valorização da vida e no bem estar das pessoas. Entretanto, o que aqui se alega é que, facilmente, pode ser ainda combinado com outros tipos de crenças, como aquela que diz que os seres humanos estão divididos em senhores e escravos, ou que existem os que conhecem a verdade e aqueles que precisam ser convencidos dela. (Popper, 1945, p.246)
Os racionalistas poderão discordar com relação à natureza das decisões morais. Todos, contudo, concordarão que os argumentos podem ajudar a tomada de decisão sobre a moralidade dos atos. Alguns insistirão, por exemplo, que as teorias morais podem buscar oferecer critérios objetivos que nos permitam decidir sobre a bondade ou maldade das ações. (Burke, 1983, pp. 193-207) Outros como, Popper, não pretendem levar tão distante a racionalidade humana, e preferem preservar o caráter subjetivo e irracional das decisões morais apelando para a idéia que todos os seres humanos possuem consciência moral e que as decisões sobre a moralidade das condutas resulta do veredicto por ela proferido. (Popper, 1945, p. 238)
Os irracionalistas estariam preparados para aceitar que as emoções e as paixões são os fundamentos das ações humanas e que é muito limitado e insignificante o papel desempenhado pela razão no controle do comportamento humano.
Uma primeira objeção de natureza moral que pode ser feita ao irracionalismo concerne à alegação que a interpretação do caráter irracional da natureza humana está intimamente associada ao apelo à violência e à força bruta como último árbitro na solução das disputas e conflitos. Os conflitos se tornam especialmente relevantes para os seres humanos quando aquelas emoções e paixões mais construtivas, tais como o amor, o respeito, a devoção ao bem comum etc., demonstraram-se incapazes de resolvê-los. Nesse caso, a única alternativa que sobra ao irracionalista consiste em apelar para outras paixões e emoções humanas menos construtivas, tais como o medo, o ódio e a violência. (Popper, 1945, p. 235)
Uma segunda objeção moral consiste na afirmação que o irracionalismo enfatiza a desigualdade entre os seres humanos. Inspirados por paixões e emoções os seres humanos seriam propensos a considerar os outros como desiguais. O fato é que não sentimos as mesmas emoções por todas as pessoas. De um ponto de vista emocional dividimos as pessoas em próximas a nós e distantes de nós, em amigos e adversários, aqueles que pertencem à nossa tribo, à nossa comunidade de crença e os outros, em compatriotas e forasteiros. A igualdade entre os seres humanos é um ideal que necessita de um conjunto de argumentos para se tornar desejável. A igualdade não é um fato, mas um ideal político baseado em uma decisão moral. Isso não significa que o irracionalismo é inconciliável com a defesa da igualdade entre os seres humanos. Para o irracionalismo essa defesa poderia até mesmo ser inconsistente, sem que isso acarretasse maiores problemas. Entretanto, aqui se deseja argumentar, o irracionalismo dificilmente pode ser dissociado da adoção da atitude contrária à defesa da igualdade entre os seres humanos. A teoria que os seres humanos são desiguais é mais compatível com a resignação frente à natureza irracional do ser humano do que o irracionalismo quer fazer valer. (Popper, 1945, p.234)
Uma terceira objeção moral concerne à afirmação que o irracionalismo induz à consideração da pessoa do outro interlocutor e não de suas idéias. O irracionalismo implica a alegação que nossas idéias são expressão de nossas paixões e emoções. Portanto, há algo mais profundo nas pessoas e que se expressa nas suas idéias. Nesse sentido, as idéias seriam expressão superficial de algo que se esconde nas profundezas do irracional no humano. A adoção do princípio da irracionalidade leva à consideração do pensamento não por seus próprios méritos, mas a tomar em conta os sentimentos, ou outras formas irracionais de manifestação, do sujeito que sustenta um ponto de vista. (Popper, 1945, p. 234)
Uma quarta objeção moral ao irracionalismo expressa-se na alegação que a adoção do princípio da irracionalidade conduz à substituição de formas institucionais controladas pela razão e apropriadas para resolver conflitos, por emoções cujo aprofundamento implica no agravamento do conflito estabelecido. Isso parece ocorrer com a sugestão irracionalista que o amor é a paixão, ou emoção, capaz de estabelecer os critérios para a identificação das ações que são apropriadas para reger de forma correta as ações humanas. Essa interpretação conduz invariavelmente à adoção de procedimentos que resultam na imposição da escala de valores daqueles que amam sobre seus respectivos seres amados. De uma forma geral, as éticas fundamentadas no amor resultam na adoção de regras de conduta que expressam a vontade de uma das partes de submeter as outras, com o objetivo de fazê-las perceber aquilo que é realmente relevante para suas próprias felicidades, para salvar suas almas ou garantir um bem estar maior. Essas éticas têm resultado em lutas religiosas, em salvação de almas através da Inquisição, em guerras de defesa da civilização e da paz. (Popper, 1945, p. 238)
O que com tudo isso se quer argumentar é que existem razões para se acreditar que o irracionalismo conduz a adoção de uma série de regras morais que resultam em comportamentos violentos e expressivos de outros vícios morais. Os argumentos aqui apresentados não significam que necessariamente o irracionalismo conduza à adoção de regras imorais de comportamento. A força do argumento está na alegação que a adoção do princípio da irracionalidade não garante o oferecimento de instrumentos que permitam evitar, minimizar, ou combater decisões morais que coloquem resistência a determinados padrões de conduta imorais que desejamos evitar.





III

Nesta terceira parte serão apresentados os fundamentos de uma epistemologia construída a partir do princípio do racionalismo crítico ou irracionalismo mitigado, com especial referência à forma como Popper os concebe e que vieram a se constituir numa espécie de acervo de contribuições do moderno debate da filosofia da ciência, ou da teoria do conhecimento científico, nos últimos cem anos. O racionalismo, em qualquer uma de suas formas terá sempre um caráter irracional. Isso significa que qualquer pessoa que adote o princípio da racionalidade o fará a partir de uma decisão irracional. A adoção da racionalidade resulta sempre de uma crença irracional na razão. Essa é a razão pela qual a posição aqui proposta pode ser intitulada de racionalismo crítico, irracionalismo mínimo, ou irracionalismo mitigado. Portanto, o racionalismo crítico não pode ser jamais compreensivo, auto-convalidado, ou totalmente garantido por uma estrutura argumentativa.
Entretanto, a explicitação do princípio da racionalidade, ou o conjunto das posições que dele podem ser inferidas, é susceptível de ser justificada através de uma cadeia de argumentos racionais e, portanto, compatíveis com o princípio da racionalidade pressuposto de forma irracional. Isso significa que a posição racionalista, isto é, a posição daqueles que pressupõem de forma irracional o princípio da racionalidade, pode ser racionalmente demonstrada como a que contem maior conteúdo informativo, como aquela que melhor resiste às nossas tentativas de examiná-la criticamente, no sentido de apontar inconsistências nos argumentos que se seguem de sua explicitação, indicar conseqüências indesejáveis que dela decorrem, bem como demonstrar que ela é incompatível com outros princípios dos quais não estaríamos dispostos a abrir mão.
Ademais dessa crença irracional na razão, uma série de teses estratégicas é proposta pelos racionalistas críticos no sentido de mitigar seu irracionalismo. Assim, são posições fundamentais do racionalismo crítico as seguintes proposições:
1. Todos os seres vivos cometem erros. Alguns têm a habilidade de antecipar seus erros, identificar quando estão errados e aprender com eles. Entretanto, somente os seres humanos deliberadamente procuram por eles. Atitude de, intencionalmente, examinar nossas representações do mundo, nossas idéias e invenções em busca do erro é o que se considera postura crítica. Isso implica que podemos cometer erros, podemos identificá-los e, muitas vezes corrigi-los. O racionalismo crítico parte da constatação que nós somos capazes de produzir uma grande quantidade de teorias sobre o mundo. Entretanto, nossa ignorância permanece infinita. Popper afirma: “Com cada passo adiante, com cada problema que resolvemos, nós não somente descobrimos novos problemas irresolutos, mas descobrimos que, ali onde pensávamos estar assentados salvos em chão firme, todas as coisas são, na verdade, inseguras e em estado de transição”. (Popper. 1976, p.87) Assim, no que concerne ao erro, o racionalismo crítico considera mais importante examinar nosso conhecimento em busca de identificar o erro do que implementar estratégias que nos levassem a deixar de cometê-lo. (Bouveresse. 1978, p.12) A crítica é uma postura que permite o controle da falsidade de nossas idéias e teorias. Os argumentos críticos são sempre tentativas de demonstrar a falsidade, a inconsistência, ou impropriedade de uma teoria apresentada por alguém.
2. O conhecimento humano se desenvolve através da construção de soluções com as quais tentamos resolver os problemas que nos propomos. As soluções propostas são sempre tentativas e jamais perdem o caráter de conhecimento hipotético e conjetural. Para o racionalismo crítico somente interessa saber se aquilo que afirmamos é falso. Se não posso dizer que é falso, então, o conteúdo daquilo que é afirmado pode ser verdadeiro e se torna relevante para fins especulativos e práticos. Podemos utilizar esse conhecimento para especular sobre o universo e praticar ações dentro dele. Entretanto, raras vezes sabemos que o conteúdo do que afirmamos é verdadeiro. Mas, para efeito de servir às nossas especulações e justificar nossas práticas, nosso conhecimento não precisa ser verdadeiro. Basta que não se possa considerá-lo falso. Para um racionalista crítico podemos pensar qualquer coisa sobre o real, desde que não exista uma razão para considerar o pensado como sendo expresso numa proposição falsa. O conhecimento humano avança por meio de conjeturas e eliminação de erros. Não existe garantia que o resultado desse processo seja a verdade, como muitos poderiam supor. (Ackermann, 1976, pp. 87-92) Nossas teorias não são relevantes porque são verdadeiras, mas, porque não existem boas razões para afirmar que são falsas. E teorias, cuja falsidade não podemos provar, são conjeturas e não necessariamente verdades.
3. As conjeturas que expressam nosso saber sobre as coisas necessitam ser criticáveis. A crítica é o instrumento de controle da falsidade das teorias. Teorias que não são criticáveis, através de argumentos e de experiências, não satisfazem o critério de racionalidade mínima anteriormente definido. (Popper, in Miller (ed.), 1983, pp. 357-365) Assim, as teorias podem satisfazer com maior ou menor precisão os critérios de criticabilidade. Uma vez que as críticas são sempre negativas, no sentido de buscar descobrir a falsidade das teorias, estamos tratando de critério de falseabilidade das teorias. Existem teorias que são empiricamente falseáveis, ou refutáveis. Elas são chamadas de teorias científicas. Existem teorias que não são refutáveis, ou seja, empiricamente testáveis, mas que são falseáveis, isto é, são susceptíveis de serem examinadas especulativamente, no sentido de descobrir se são, ou não são, falsas. Elas são as teorias metafísicas, lógicas e matemáticas. (Peluso; 1995, pp.31-39) As teorias científicas são sujeitas a um controle empírico mais rigoroso e nesse sentido são teorias que possuem um grau de falseamento maior, na medida em que sua falsidade pode ser testada por meio de experimentos com os fatos. E os fatos, principalmente aqueles que contradizem nossas teorias, não são nossas invenções. Entretanto, a satisfação dos critérios de criticidade não é uma peculiaridade apenas do conhecimento científico. Satisfazer os critérios de falseabilidade é parte da descrição geral da boa prática epistêmica. (Newton-Smith, W.H.; in O’Hear (org.), 1995, p.33)


Conclusão



A posição aqui apresentada e identificada como racionalismo crítico, não corresponde, em todos os seus detalhes às teses de Popper sobre o assunto. O fato é que as teorias de Popper foram objeto de um intenso debate, principalmente durante os anos entre 1960 e 1990. Nesse período se procedeu a uma discussão mais detalhada dos argumentos postos por Popper na explanação de suas teses, bem como, a posição do chamado racionalismo crítico foi depurada com a identificação de algumas teses relevantes, que vieram a constituir no núcleo central da teoria.
No que concerne particularmente à posição de Popper quanto à fundamentação do princípio de racionalidade as discussões se desenvolveram em três direções. Foi fortemente criticada, por O’Hear, a afirmação que o princípio de racionalidade, em qualquer uma de suas formulações, é baseado em uma fé irracional na razão. Na interpretação dele, Popper apenas demonstrou que o princípio de racionalidade não satisfaz uma demanda, a qual, por razões lógicas, não pode ser satisfeita. Entretanto, isso dificilmente pode ser considerado como uma demonstração de sua irracionalidade. Portanto, Popper teria fracassado em sugerir qualquer padrão racional que o princípio de racionalidade viesse a infringir. (O’Hear, 1980, pp. 148-153) Bartley, por sua vez, argumenta no sentido de aprofundar as implicações da irracionalidade do princípio de racionalidade. Assim, alega que, uma vez que o racionalista admite que sua posição se fundamenta em uma fé irracional, ele não disporia de base para toda crítica dirigida àqueles que são irracionalistas. Todas as posições seriam, em última instância, fundamentadas em escolhas arbitrárias. Assim, o irracionalista, quando desafiado sobre a irracionalidade do fundamento de sua posição, estaria autorizado a alegar que o mesmo faz o seu interlocutor racionalista. (Bartley, 1962, pp. 133-134) Outra linha de questionamento das teses de Popper sobre o sentido da racionalidade foi proposta por Paul Bernays, o qual argumenta no sentido de ampliar o conceito de racionalidade proposto por Popper. Assim, a racionalidade seria caracterizada por um elemento conceitual que transcende o que se percebe e se imagina e produz um certo tipo de entendimento. Nesse sentido, a racionalidade humana não se expressaria unicamente na critica, mas também na criatividade. (Bernays, in Schilpp, 1974, vol. I, pp. 597-605 e Popper, in Schilpp, 1974, vol II, pp. 1081-1091) Certamente todas essas críticas foram relevantes para a compreensão dos problemas que estão envolvidos na posição sustentada por Popper. Entretanto, nenhuma delas foi suficiente para demonstrar a insustentabilidade da tese que há um fundamento irracional na adoção do princípio de racionalidade.
Somente algumas das teses apresentadas por Popper constituem hoje o acervo das teorias que caracterizam o racionalismo crítico. Muitas de suas posições concernentes às peculiaridades do método científico, com especial referência ao problema da indução, foram criticadas e se chegou a considerar demasiadamente simplificado o seu modelo de interpretação do procedimento científico. Sua interpretação do método científico nas ciências sociais, principalmente sua teoria da lógica da situação, tem sido considerada insatisfatória. A sugestão de que a teoria darwinista é apropriada para interpretar o desenvolvimento do pensamento humano tem sido contestada. Entretanto, há um conjunto de posições que foram sugeridas por Popper e algumas que decorreram da discussão de suas idéias que constituem hoje a base do racionalismo crítico.
O texto que aqui se conclui não pode ser considerado como uma recuperação da forma como Popper teria resolvido a questão da fundamentação do racionalismo crítico ou do irracionalismo moderado, principalmente, se o que está em pauta é o confronto com o irracionalismo. A solução de Popper, conforme sugerida nas vezes em que abordou esse tema, teria sido mais insistente na repulsa ao irracionalismo e na insistência no caráter irracional e volitivo da própria condenação da natureza imoral do irracionalismo. Aqui se tentou preservar espaço para aqueles que, discordando de Popper, sustentam uma visão mais racional da própria fundamentação dos argumentos éticos e desejam criticar a irracionalidade em bases racionais.




BIBLIOGRAFIA

Ackermann, Robert John
[1976] “The philosophy of Karl Popper”. Amherst, University of Massachussets Press, 1977.

Bartley, W.
[1962] “The retreat to commitment” New York: Knopf, 1962.

Bouveresse, Renée
[1978] “Karl Popper ou le rationalisme critique”. Paris: J. Vrin, 1978.

Burke, T.E.
[1983] “The philosophy of Karl Popper”. Manchester: Manchester University Press, 1983.

Miller, David (ed.)
[1983] “A pocket Popper”. Oxford: Fontana, 1983.

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[1980] “Karl Popper”. London: Routledge and Kegan Paul, 1980.

[1995] “Karl Popper: filosofia e problemas”. Anthony O’Hear (org.), São Paulo, UNESP, 1997.

Peluso, Luis Alberto
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Popper, Karl Raimund
[1945] “The open society and its enemies”. London: Routledge & Kegan Paul, 2 vols., 1980. Em português: “A sociedade aberta e seus inimigos”. Belo Horizonte: Itatiais/Edusp, Trad. Milton Amado, 2 vols., 1974.

[1963] “Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge”. London: Routledge and Kegan Paul, 1972. Em português: “Conjecturas e Refutações: o progresso do conhecimento científico”. Brasília: Edit. UnB, 1972.

[1969] “The positivist dispute in german sociology”. London: Heinemann, 1977.

Schilpp, Paul Arthur (ed.)
[1974] “The philosophy of Karl Popper”. La Salle, Illinois: Open Court, 2 vols., 1974.

Stowe, David
[1982] “Popper and after: four modern irrationalists”. Oxford: Pergamon Press, 1984.

CAPÍTULO 4 - Os Limites de Nossas Teorias Racionais

OS LIMITES DE NOSSAS TEORIAS RACIONAIS



Todos nós partimos do "realismo ingênuo", isto é, a doutrina de que as coisas são como parecem... Mas a física nos garante que o verde da grama, a dureza e a frieza das pedras, e a frieza da neve não são o verde, a dureza e a frieza que conhecemos de nossas experiências pessoais, mas alguma coisa diferente. O observador... realmente... está a observar o efeito da pedra sobre ele... O realismo ingênuo leva à física e a física, se for verdadeira, demonstra que o realismo ingênuo é falso. Dessa forma, o realismo ingênuo, se for verdadeiro, é falso; portanto, é falso. (B. Russell. An inquiry into meaning and truth, Londres, 1940, pp. 14-15)


Introdução


De forma geral, as teorias sobre o método do conhecimento científico podem ser analisadas em duas perspectivas. Primeiramente, elas se constituem de análises das relações entre os enunciados científicos. Nesse sentido, as teorias sobre o método científico procuram descrever a estrutura lógica das explicações científicas. Num segundo aspecto, as teorias sobre o método científico expressam a preocupação com a própria natureza da Ciência. Nesse segundo sentido, as teorias sobre o método científico respondem questões sobre o que é progresso científico, o que são problemas científicos e quando é que uma solução pode ser considerada satisfatória. As teorias sobre o método científico procuram, ainda, estabelecer determinados objetivos em função dos quais são definidas as características que devem possuir os enunciados científicos.

A teoria sobre o método científico, como análise puramente lógica, constitui-se no estudo das relações lógicas de um sistema de enunciados. Nesse sentido, a teoria do método é útil na avaliação dos critérios para decidir se um enunciado é suscetível de prova " ... ela certamente não se preocupa com a questão de saber se alguém se disporá a fazer a prova".(1) Nesse sentido, a teoria sobre o método científico não se preocupa com o aspecto dinâmico da ciência. Desconhece a maneira como ela se altera e evolui.

Portanto, o estudo da lógica da pesquisa científica vai muito além dos problemas referentes à estrutura formal dos enunciados científicos. Abrange também aspectos de uma lógica geral, que permite ao cientista escolher entre teorias concorrentes, determinar quando um problema foi suficientemente debatido e quais as soluções que merecem atenção e estudo. Enfim, a lógica da pesquisa científica permite ao teórico da ciência a escolha das próprias características formais que um sistema deve satisfazer para ser considerado científico. Popper parece concordar com essa análise quando afirma: “Não nego que algo possível de ser denominado "análise lógica" tenha como desempenhar um papel nesse processo de esclarecer e aprofundar os problemas e as soluções por nós propostas; não afirmo que os métodos de "análise lógica" ou de "análise lingüística" sejam necessariamente inúteis. A tese por mim defendida é, antes, a de que esses métodos estão longe de se constituir nos únicos que um filósofo possa utilizar com vantagem, e sustento que eles não são mais característicos da filosofia do que qualquer outra investigação científica ou racional.”(2)

É nesse segundo sentido que a lógica da pesquisa científica permite que se estabeleçam as regras que orientam o cientista empenhado no trabalho da pesquisa. Essa posição implica que um dos elementos significativos para a escolha do método científico é a conceituação de ciência. A concepção do método científico, em termos de regras metodológicas convencionais, é conseqüência de uma interpretação crítica da ciência, em que os enunciados empíricos são suscetíveis de revisão e de substituição por outros mais adequados. Nesse sentido, o método científico expressa as regras do jogo da ciência empírica.

Assim, a teoria da ciência é a descrição da relação constante dessas regras entre si, e a explicitação da referência dessas regras com o conceito de ciência proposto. “A teoria do Método, na medida em que se projeta para além da análise puramente lógica das relações entre enunciados científicos, diz respeito à escolha de métodos - as decisões acerca da maneira de manipular enunciados científicos. Naturalmente, tais decisões dependerão, por seu turno, do objetivo que selecionemos dentre os numerosos objetivos possíveis.”(3)

O que esta posição parece sugerir é que existe uma relação de implicação entre metodologia e teoria da ciência. Disso se segue que a maneira como encaramos as regras do método científico depende da atitude que tomamos perante a ciência.(4) Deste modo, uma concepção crítica de ciência estaria associada às seguintes regras metodológicas:

l. As regras do procedimento científico devem ser elaboradas de maneira a não proteger contra o falseamento qualquer enunciado científico.

2. 0 jogo da ciência é um princípio interminável. Quem decide, um dia, que os enunciados científicos já não exigem prova e podem ser vistos como definitivamente verificados, retira-se do jogo.

3. A hipótese, uma vez estabelecida, submetida à prova, e tendo comprovado suas qualidades, não será afastada sem uma boa razão. Ela somente pode ser substituída por falseamento ou por outra de maior poder explicativo.


A definição das regras metodológicas para a ciência é dependente da elaboração de uma teoria da ciência. (5) Isso significa que podemos interpretar a ciência de formas diferentes, o que certamente resultaria em diferentes propostas de regras metodológicas. O que tudo isso parece significar é que com esse argumento se procura evitar uma concepção essencialista de ciência e de método científico.(6) Nesse sentido, as regras metodológicas são convenções. (7) E, de certa forma, também o conceito de ciência depende de nossas decisões. (8) Essa posição pode ser identificada como "essencialismo modificado".



1.



Pode-se afirmar que, com pequenas diferenças, Aristóteles e a escolástica medieval partilharam da mesma interpretação essencialista em relação às teorias racionais. "Essencialismo" é a teoria que "...é tarefa do conhecimento puro, ou 'ciência', descobrir e descrever a verdadeira natureza das coisas, isto é, sua realidade ou essência ocultas". (9) Aristóteles teria partido da distinção platônica entre "episteme" (ciência, conhecimento fundamentado) e "doxa" (opinião, conhecimento vulgar). Na epistemologia aristotélica, o conhecimento científico pode ser "demonstrativo" - consiste em afirmações que podem ser demonstradas, conhecendo-se, portanto, as causas -, e intuitivo - consiste na apreensão da "forma indivisível" ou "essência" da coisa. Todo o conhecimento científico se origina na intuição. Com efeito, todas as provas derivam de premissas e estas são conclusões de outras premissas, não sendo possível, portanto, provar ou demonstrar o todo. A verdade da conclusão está sempre condicionada à verdade das premissas. Dessa forma, temos que supor a veracidade das premissas para evitar um processo ad infinitum. Isso significa que devemos admitir premissas indubitavelmente verdadeiras e que não necessitam de qualquer prova. São as "premissas básicas". Essas premissas básicas se originam na intuição das essências das coisas. São descrições das essências das coisas, na medida em que as definem. A definição de uma coisa é, simplesmente, a proposição que descreve a essência ou conjunto de propriedades essenciais da mesma. Por exemplo, ao afirmar que "os homens e as mulheres são animais racionais", estar-se-ia nominando as propriedades constitutivas de alguma coisa. Essas propriedades constitutivas são diferentes das propriedades acidentais - a essência é o que a coisa "é em si", o acidente é o que existe em outro e por outro. Possuímos, segundo Aristóteles, uma capacidade intelectual de intuir as essências, de captá-las e conhecê-las tais quais são. Assim, o conteúdo do conhecimento é idêntico ao seu objeto. O conhecimento progride conforme ampliamos o conjunto de definições que possuímos com novas essências ou, então, preenchemos lacunas nele existentes. A partir do conjunto de definições, é possível deduzir logicamente todo o conhecimento científico”. (10)

Para Aristóteles, o verdadeiro método científico é a dedução. Sobre o fantasma (ou imagem) sensível, exercita-se a faculdade abstrativa do intelecto. É ela que colhe a forma, separada da matéria (desindividualizada), isto é, o elemento universal ou essência, o que um ente é. A abstração intelectual traduz em ato o elemento inteligível que existe em potência no real concreto.

Assim, a forma inteligível, ou conceito, é abstraída dos dados sensíveis. Essa forma inteligível se caracteriza por ser universal e necessária. Por exemplo, das sensações de diversos seres humanos (ou, então, da sensação produzida por um só ser humano), cada uma das quais é conhecimento particular de um indivíduo singular, o intelecto abstrai os caracteres essenciais e enuncia o conceito universal de ser humano. O conceito existe apenas enquanto é pensado pelo intelecto. Na realidade, não existe o conceito de ser humano, mas existem os seres humanos singulares e concretos. Isto é, existe, sim, a forma universal de ser humano, mas individualizada em cada ser humano singular. O processo de abstração é aquele pelo qual o intelecto colhe a natureza ou essência ou a forma real. Por meio da abstração, ele se eleva a conceitos sempre mais universais, isto é, mais extensivos. Por exemplo, se tomamos o conceito de ser humano, conservamos os caracteres que o ser humano tem em comum com os outros mamíferos e abstraímos o que cada espécie de mamífero tem de próprio, formamos o conceito mais geral de mamífero.

Por meio do processo de abstração, podemos chegar a conceitos mais gerais ainda, até alcançarmos conceitos generalíssimos, além dos quais não é possível abstrair mais.

O conhecimento intuitivo do conceito não basta; é necessário também o conhecimento discursivo, isto é, a análise, que é obra da razão humana. Definir é determinar os caracteres essenciais, o conteúdo, de um conceito, decompondo-o em seus elementos constitutivos. Definir é indicar o gênero próximo e a diferença específica, que distingue uma espécie das outras do mesmo gênero. Assim, quando definimos os homens e as mulheres como animais racionais, estamos determinando seu gênero próximo e sua diferença específica.

Assim, podemos falar em uma escola de pensadores essencialistas em questão do método. Seriam aqueles que, baseando-se em Aristóteles, partem da afirmação de que a investigação científica tem de penetrar a essência das coisas para poder explicá-las. “Os essencialistas metodológicos põem-se a formular perguntas científicas em termos como: "que é matéria?" ou "que é força?" ou, ainda, "que é justiça?", e acreditam que uma resposta penetrante a essas perguntas, que revele o significado real ou essencial desses termos e, por conseguinte, a natureza real ou verdadeira das essências apresentadas por eles, é, pelo menos, um indispensável requisito prévio da investigação científica, senão sua principal tarefa”. (11)


2.




Entretanto, pode-se argumentar que os métodos da ciência não demonstram a verdade das proposições Partindo da constatação de que as concepções essencialistas diferem fundamentalmente dos métodos da ciência moderna, pode-se criticar a visão essencialista de Aristóteles. Os métodos da ciência moderna podem ser interpretados em termos de proposições que não garantem a veracidade das sentenças que resultam da própria aplicação do método. As teorias científicas são apresentadas como hipotéticas e presuntivas. Assim, a cada passo, a ciência progride abandonando teorias para substituí-las por outras que conservam o mesmo caráter conjectural. Assim: “...em outras palavras, sabemos que nossas teorias científicas devem sempre permanecer como hipóteses, mas que, em muitos casos importantes, podemos verificar se uma nova hipótese é ou não superior a uma antiga. Se forem diferentes, levarão a diversas predições que, muitas vezes, podem ser verificadas experimentalmente e, na base de tão crucial experimentação, podemos, muitas vezes, verificar que a nova teoria leva a resultados satisfatórios, enquanto a velha se desmorona. Assim, podemos dizer que, em nossa busca da verdade, substituímos a certeza científica pelo progresso científico. E essa concepção do método científico é ratificada pelo desenvolvimento da ciência. Esta não se desenvolve por meio de uma gradual acumulação enciclopédica de informação essencial, como pensava Aristóteles, mas por método muito mais revolucionário; progride por meio de idéias ousadas, pelo avanço de novas e muito estranhas teorias (tais como a teoria de que a terra não é plana ou de que o "espaço métrico" não é plano) e pela derrubada das antigas”. (12)

Nenhum método científico consegue invalidar o caráter subjetivo dos enunciados da ciência; toda proposição científica traz consigo as deformações nela colocadas pelo cientista. Somente a atitude crítica da comunidade científica é capaz de depurar os enunciados. E nisso consiste a objetividade científica.

Fora dessa interpretação, a idéia de uma ciência objetiva fundamenta-se em uma visão essencialista do papel das teorias científicas. E. Nagel é particularmente incisivo quando propõe o caráter asséptico da atitude crítica na obtenção da objetividade científica. Vai mais longe, contudo, ao afirmar a natureza coletiva de tal atitude crítica. Ele diz: “Os homens raramente se dão conta de que há muito de hipotético no que têm por indubitável e, muitas vezes, acreditam-se livres de compromissos intelectuais de qualquer espécie, quando, na verdade, estão endossando tacitamente muito de falso. Embora a deliberação de adotar atitude crítica relativamente às presunções possa ter certo valor, a objetividade da ciência não é conseqüência dela. Ao contrário, a objetividade deve-se a uma comunidade de pensadores, cada um deles a criticar severamente as afirmações dos demais. Nenhum cientista é infalível e todos apresentam suas peculiares deformações intelectuais ou emocionais. As deformações raramente são as mesmas; e as idéias que sobrevivem às críticas de numerosos espíritos independentes revelam maior probabilidade de serem legítimas do que as concepções tidas por válidas simplesmente pelo fato de parecerem auto-evidentes a um pensador isolado.” (13)

A crítica à interpretação essencialista das teorias científicas prossegue, ainda, com o argumento de que as definições têm, na ciência moderna, uma interpretação completamente diferente daquela proposta por Aristóteles. Em Aristóteles, a definição explicita a essência de alguma coisa que um termo significa. Assim, existe uma perfeita identificação entre a essência e o significado. A definição responde à questão que pergunta pela essência e pelo significado de alguma coisa - O que significa? O que é? Entretanto, na atualidade, não é necessário distinguir entre essas duas perguntas; mais importante é ver o que têm em comum. É particularmente notório que ambas são suscitadas pelo termo que, na definição, fica do lado esquerdo e respondidas pela fórmula definidora que fica do lado direito. “Esse fato caracteriza a concepção essencialista, da qual difere radicalmente o método científico de definição. Enquanto podemos dizer que a interpretação essencialista lê urna definição "normalmente", isto é, da esquerda para a direita, podemos dizer que uma definição, tal como normalmente empregada na ciência moderna, deve ser lida de trás para diante ou da direita para a esquerda, pois começa com a fórmula definidora e reclama para ela um breve rótulo.” (14)

Na ciência moderna, as definições não são essencialistas, como quer Aristóteles, mas simples rótulos, símbolos abreviados ou apenas nomes cômodos para substituir uma longa descrição. Prolongadas discussões acerca do significado das palavras não são muito comuns entre os cientistas.

A teoria de que é necessário definir nossas palavras antes de iniciarmos uma discussão proveitosa é incoerente. Toda vez que se pretende definir um termo, explicar um conceito, torna-se necessário introduzir novos termos e novos conceitos na definição. Esse processo segue ao infinito, pois se faz necessária a explicação desses novos conceitos introduzidos. Nesses termos, nunca se poderia chegar a uma discussão crítica do problema que se esconde por trás dos termos. A discussão deve, portanto, utilizar termos não definidos. Na prática os termos são rótulos de grande utilidade, e devem ser tomados como tais. O conhecimento rigoroso não exige uma análise rigorosa dos termos a serem empregados.(15)

A concepção essencialista das teorias científicas implica, ainda, a idéia que existem enunciados auto-evidentes ou necessariamente verdadeiros. Segue-se, dessa posição, que os sistemas de explicações científicas são uma seqüência de proposições que descrevem a realidade tal como ela é. Não se pode, portanto, admitir que os fatos sejam diferentes daquilo que se afirma que são nos enunciados científicos. Ora, como a ciência é um conjunto de enunciados que podem ser demonstrados, isso implica que existem certas premissas primeiras ou enunciados básicos que devem ser auto-evidentes e necessariamente verdadeiros.

Essa interpretação parece ser confirmada por E. Nagel, quando afirma: ”Essa concepção da natureza da ciência era plausível, enquanto a geometria euclidiana constituía o único exemplo de conhecimento sistematizado; continua a ser defendida por muitos pensadores contemporâneos que admitem que o "universo é racional" e, assim, "não pode haver resíduo de fatos irracionais (isto é, contingentemente verdadeiros) no conjunto da ciência". Todavia, à luz da história da ciência, tal concepção é insustentável. Com efeito, não há ciência alguma cujos pressupostos básicos relativos a questões de fato sejam realmente auto-evidentes, e o progresso da investigação, em todos os ramos da ciência, revelou que princípios tidos como basilares em certa época tiveram de ser modificados ou substituídos para manter a adequação a fatos revelados por novas descobertas. A tese de que os chamados primeiros princípios da ciência são passíveis de alteração é claramente ilustrada por desenvolvimentos atuais da física, na qual se tem procedido a revisões de pressupostos teóricos considerados indubitáveis.” (16)

A teoria essencialista do método científico tem se apresentado sob a forma de duas doutrinas: a doutrina esotérica da intuição intelectual e a doutrina da necessidade de "definir nossas palavras", se quisermos ser científicos.



3.


A doutrina da intuição intelectual, isto é, a teoria de que "podemos alcançar as essências e produzir a definição perfeita das coisas", recebeu de Aristóteles uma de suas primeiras formulações. Essa teoria tem uma considerável influência em Hegel e tem sido o fundamento de algumas correntes contemporâneas sobre o método científico. (17)

Hegel critica a lógica tradicional justamente porque acredita que ela, ao distinguir entre real e ideal, comprometeria a possibilidade de se atingir a essência das coisas em toda a sua concretude. Definir, na lógica clássica, significa delimitar uma parte da realidade, fixar sua essência. Segundo Hegel, os princípios da lógica tradicional (identidade e contradição), ao isolarem um fragmento da realidade, negam essa mesma realidade, quando a tornam abstrata. Ao captarem apenas um momento da realidade, negam seu próprio ser, que é devir dialético e, portanto, essencialmente dinâmico.(18) Somente uma lógica que consegue captar a contraditoriedade do real é capaz de exprimi-lo em conceitos verdadeiros. A realidade é dialética e todos os caracteres do real não estão separados e sim, envolvidos no mesmo processo. Todo momento não é real separadamente, mas o é no processo do qual faz parte. A lógica clássica deixa escapar a essência da realidade e do pensamento, pois, em vez de captar todo o ser, atinge tão somente um fragmento abstrato seu.

A lógica dialética consegue captar o caráter dinâmico do real. A lógica dialética nega o princípio de contradição, e permite a compreensão de que “A”(tese) e "não-A" (antítese) não se excluem, encontram-se conservados e superados como momentos concretos da síntese. Nesse sentido, o processo dialético do pensamento identifica-se com o processo do real. O conceito da lógica tradicional é universal, abstrato. O conceito da lógica dialética é universal, concreto.


4.



A teoria intuicionista está igualmente presente na fenomenologia, especialmente na formulação que lhe deu Edmond Husserl. (19) Husserl propõe que as essências das coisas "são dadas" ao pensamento e este as revela. As essências são um todo orgânico do qual a nossa consciência e o mundo participam fragmentariamente. Dessa forma, cada sujeito cognoscente tem o seu "mundo dado", ou seja, a totalidade de si mesmo como ser consciente. O método do conhecimento é a descrição do fenômeno, isto é, o que é dado imediatamente ao intelecto. A atividade do conhecimento não é fruto da busca de algo subjacente à realidade aparente. O conteúdo do conhecimento é um "dado" e não se reduz ao seu processo de aquisição. As formas essenciais, ou eidos, dos objetos são captadas imediatamente pela consciência. Assim, a fenomenologia é o método para descrever o fenômeno. (20)

Segundo Husserl, existem duas ciências: a ciência dos fatos (ciência fática), que se fundamenta sobre a experiência sensível, e a ciência das essências (ciência eidética), cujo objeto é a intuição ou contemplação das Essências. A ciência das essências fundamenta-se nas intuições eidéticas. Ele afirma: ”E mais, se, ainda assim, a teoria do conhecimento pretende investigar as relações entre a consciência e o Ser, ela pode encarar o Ser apenas como correlativo com a consciência, como algo, cujo "significado" corresponde com a consciência: na sua qualidade de percebido, recordado, esperado, imaginado, fantasiado, identificado, distinto, acreditado, suposto, estimado etc. Vê-se, então, que a investigação precisa ser dirigida a uma intuição essencial e científica da consciência, para aquilo que a consciência, ela própria, "é" em sua essência, e simultaneamente para aquilo que "significa" em todas as suas formas distintas, bem como para os modos diversos de ela - em conformidade com a essência dessas formas - se referir ao concreto, "provando", porventura, o "valor" e a realidade" de sua substância, de maneira quer clara quer não, ora presente ora atualizada, significativa ou figurativa, simples ou intelectualizada, neste ou naquele modo atencional e assim por diante, num infinito de outras formas.” (21)

A essência, o eidos, está contida no dado. Portanto, para captá-la é necessário prescindir dos outros elementos que não interessam à investigação fenomenológica. Desse modo, algumas etapas são necessárias. Primeiramente, devemos nos desfazer, excluir (por entre parênteses), tudo o que, no conteúdo de consciência, refere-se ao sujeito psicológico e à existência individual. Num segundo momento, faz-se necessário reduzir tudo quanto não é correlato da pura consciência. Por esses processos, chegamos a uma consciência irredutível, na qual se encontram as essências universais.



5.



A intuição intelectual não produz a veracidade do enunciado científico. Certamente, algumas de nossas experiências intelectuais podem ser descritas como intuições intelectuais. Assim, por exemplo, é intuitiva a forma pela qual entendemos os conceitos euclidianos de ponto, reta e plano. Contudo, isso não justifica a intuição como capaz de garantir que um enunciado ou teoria científicos sejam verdadeiros. Ainda que estejamos plenamente convencidos da veracidade do conteúdo de um enunciado, e não possuamos o menor indício de sua falsidade, isso não é suficiente para garantir a sua veracidade. A intuição da veracidade de uma teoria por um indivíduo pode ser seguida pela intuição de sua falsidade por outro. (22)

A intuição não evita arbitrariedade. O essencialismo ou intuicionismo apresenta, ainda, uma outra dificuldade: torna arbitrária a noção de verdade. (23) Suponhamos que se tente aplicar a teoria intuicionista na solução dos seguintes problemas: Como podemos verificar se uma definição proposta e formalmente correta é verdadeira? Como podemos decidir entre duas definições concorrentes?
Suponhamos que alguém afirme que "os homens e mulheres são bípedes sem penas". Certamente, tal definição não seria aceita por um essencialista que alegaria em sua refutação o fato de tal definição não expressar a "humanidade"; do que se conclui, portanto, não descrever a essência de homens e mulheres. Contudo, para defender sua posição, seria obrigado a afirmar que, ao definir homens e mulheres como “animais racionais" estaria expressando a captação intelectual da essência. Como conseqüência, se sua definição fosse rejeitada, o essencialista somente teria duas saídas. A primeira consiste em afirmar que sua intuição intelectual é a única verdadeira, o que também poderia ser feito por seu opositor. Chegaríamos, portanto, a um impasse. Isso tomaria impossível o conhecimento final indubitável. A segunda posição consistiria em admitir que a intuição intelectual de seu opositor é tão verdadeira quanto a sua, mas que se trata de duas essências diferentes. Assim, a discordância de definições não existiria, tratando-se apenas de mera coincidência de nome. E seria concluída a suposta discordância com a sugestão de que sejam utilizados nomes diferentes para essências diferentes. Contudo, permanece impossível determinar o critério pelo qual se dará o rótulo "homem e mulher" a uma ou outra coisa. A atribuição de nomes ou rótulos continuará a ser arbitrária e, conseqüentemente, toda afirmação poderá ser considerada aceitável, desde que formalmente correta. Disso se conclui que toda premissa é aceitável e, portanto, todo silogismo é coerente, ao ser formalmente correto. Dessa forma, torna-se impossível construir um enunciado falso.


6.



Uma outra forma de essencialismo expressa-se na teoria de que “se quisermos ser precisos devemos definir nossas palavras" ou, ainda, de que "podemos tornar a linguagem mais precisa pelo uso de definições". Popper argumenta que essa doutrina se inspira também no essencialismo aristotélico. Contudo, ao contrário da doutrina esotérica da intuição intelectual, que implica a necessidade de definir todas as coisas, essa doutrina implica a definição de todos os termos. (24)

A teoria nominalista que propõe a necessidade de se definir as palavras, tem sua expressão máxima em Wittgenstein. De início, convém destacar dois períodos na atividade filosófica de Wittgenstein. O primeiro período resulta no Tractatus logico-philosophicus, obra hermética, na qual ele procura estudar a estrutura e os limites do pensamento, pelo método do estudo da estrutura e dos limites da linguagem. Assim, a natureza da linguagem passa a ser o elemento condicionador do conhecimento, pois só por meio de seu estudo podemos saber o quanto se pode e o que não se pode fazer com ela. A compreensão de que os limites da linguagem são decorrentes de sua própria estrutura interna teria levado Wittgenstein a elaborar uma teoria da lógica.

Num dos pontos mais importantes do Tractatus logico-philosophicus, Wittgenstein afirma que "a totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência da natureza - ou a totalidade das ciências naturais" (4.11). Em 4.111, ele diz que "a filosofia não é ciência da natureza (a palavra 'filosofia' deve denotar alguma coisa que se coloca acima ou abaixo, mas não ao lado das ciências naturais)". A conclusão desse argumento é que não há lugar para o conhecimento filosófico, já que os conhecimentos verdadeiros caem no domínio das ciências da natureza.

Para Wittgenstein, as proposições são ou verdadeiras, ou falsas, ou proposições sem sentido. Estas últimas são "simplesmente absurdas". Ele tenta traçar um limite, em nossa linguagem, entre o absurdo e o sensato. Argumentando que o limite pode ser traçado nos idiomas, conclui que o que fica do outro lado do limite é o absurdo. Não existem proposições filosóficas. Estas apenas têm aparência de proposições, mas, de fato, são insensatas. (25) O limite entre o sensato e o insensato coincide com o existente entre ciência natural e a filosofia. A verdadeira tarefa do filósofo, portanto, não é formular proposições; é, antes, esclarecer proposições. Assim, afirma em 4.112: "A finalidade da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos".

A filosofia não é teoria, mas atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente em comentários. A filosofia não resulta em "proposições filosóficas", mas em tornar claras as proposições. Ela deve tomar os pensamentos que, por assim dizer, são vagos e obscuros e tomá-los claros e bem delimitados. Portanto, busca uma linha demarcatória entre o sensato e o insensato e verifica que sua demarcação coincide com aquela existente entre ciência e metafísica, isto é, entre as sentenças verificadas e as pseudo-proposições filosóficas. Afirma, em 4.113: "A filosofia delimita o domínio contestável das ciências naturais". O filósofo não dá sentido a certos sinais em suas proposições, ao passo que todos os sinais utilizados pelos cientistas têm sentido. O método correto da filosofia seria nada dizer, com exceção do que pode ser dito. Ora, como a totalidade das sentenças significativas é que forma as ciências naturais, o enunciado da filosofia será constituído de sinais sem sentido preciso. Assim, as proposições filosóficas são, de fato, pseudo-proposições sem sentido. Dessa forma, a filosofia é uma tolice sem significado.

Em outra passagem do Tractatus logico-philosophicus (4.52), Wittgenstein afirma: "As proposições são tudo o que se segue à totalidade das proposições elementares (sem dúvida, porque parte da totalidade de todas elas). (Em certo sentido, é possível dizer que todas as proposições são generalizações das proposições elementares)". E, logo a seguir (5), afirma: "A proposição é uma função de verdade das proposições elementares. (A proposição elementar é uma função de verdade de si mesma)". Dessa forma, as proposições científicas podem ser verificadas empiricamente. É a partir das proposições baseadas na observação empírica que se pode construir o universo científico. Todas as proposições, para serem verdadeiras, devem referir-se direta ou indiretamente a uma constatação empírica, por meio de proposições derivadas logicamente das primeiras (conforme as exigências de coerência lógica).

Em outra passagem do Tractatus logico-philosophicus (6.5), Wittgenstein afirma: "Para uma resposta inexprimível, é inexprimível a pergunta. O enigma não existe. Se uma questão pode ser colocada, poderá também ser respondida". Não apenas a filosofia deixa de ter direito à existência, uma vez que suas proposições não se subordinam ao critério de verificação empírica, mas os próprios problemas filosóficos não existem.

E, em 6.51, afirma: "O ceticismo não é irrefutável, mas patentemente absurdo, quando pretende duvidar no momento onde não cabe perguntar. A dúvida, pois, só existe onde existe uma questão; uma questão, apenas onde existe uma resposta; e esta somente onde algo pode ser dito". Assim, o objeto da filosofia desaparece.

Ao concluir o Tractatus logico-philosophicus, Wittgenstein afirma, em 6.54: "Minhas proposições se elucidam do seguinte modo: quem me entende, por fim as reconhecerá como absurdas, quando, graças a elas - por elas -, tiver subido para além delas. (É preciso, por assim, dizer, jogar fora a escada depois de ter subido por ela). Deve-se vencer essas proposições, para ver o mundo corretamente". E, em 7: "O que não se pode falar, deve-se calar". Dessa forma, aparentemente, esclarece-se a contradição de um pensador que filosofa para destruir a filosofia.

Mais tarde, o próprio Wittgenstein veio a repudiar essa obra e tentou corrigi-la. Passou, então, a investigar os diferentes caminhos pelos quais podemos nos perder em razão do uso da linguagem. Assim, abandona a idéia de que a estrutura da realidade determina a estrutura da linguagem, sugerindo que ocorre exatamente o contrário: nossa linguagem é que determina a estrutura da realidade, pois é pela linguagem que vemos as coisas. Ainda mais, abandona a concepção, sustentada no Tractatus Logico-philosophicus, de que as línguas possuem uma estrutura lógica uniforme e que as diferenças entre as formas lingüísticas constituíam variações superficiais.

Abandona essa posição e passa a defender uma diametralmente oposta, ou seja, a idéia que a linguagem não tem uma essência comum. Nesse sentido, a diversificação das formas lingüísticas é decorrente da estrutura da linguagem, e não apenas de suas manifestações superficiais. Essas novas idéias aparecem em sua obra Philosophical investigations. Sobre ela, assim se expressa David Pears:
“Em Philosophical investigations, é mais fácil que nos sintamos perdidos porque, embora construídas de maneira similar, trata-se de uma série de anotações recolhidas de assentamentos, dispostas de acordo com a matéria tratada, sem um plano diretor. Está presente a mesma preocupação com a estrutura e os limites da linguagem, que já não se deduzem, entretanto, de uma única teoria global. São deduzidos, passo a passo, de um conjunto de material lingüístico inter-relacionado. O resultado é um novo tipo de obra filosófica, na qual não se contém uma generalização ampla e na qual se faz notavelmente escassa a asserção categórica. Está recheada de descrições da linguagem, pormenorizadas e corriqueiras, apresentadas dialeticamente, de maneira que convida o leitor a participar do diálogo. (26)


7.



As teorias do método de Wittgenstein, entretanto, são passíveis de uma série de objeções. (27) Inicialmente, façamos uma análise da proposta de que "a filosofia não é teoria, mas atividade'. Essa proposição não pertence à "totalidade das proposições certas". Por outro lado, também não é falsa, visto que, então, sua negativa seria verdadeira e, portanto, pertenceria à ciência natural. Do que se conclui que ela não deve ter significado, ou sentido, sendo esse mesmo raciocínio válido para a quase totalidade das proposições de Wittgenstein. Aliás, ele mesmo propõe isso, ao afirmar que o reconhecimento de que suas proposições são absurdas é a atitude daqueles que realmente o compreendem. Mas afirma, também, no prefácio do Tractatus logico-philosophicus, que: “No entanto, a verdade dos pensamentos comunicados aqui me parece intocável e definitiva, de modo que penso ter resolvido os problemas no que é essencial. Se não me engano, o segundo valor deste trabalho é mostrar quão pouco se consegue quando se resolvem tais problemas. (28)

Portanto, o próprio Wittgenstein admite a possibilidade de se transmitir a verdade intocável e definitiva dos pensamentos comunicados por meio de enunciados insensatos ou sem sentido. Por meio de proposições sem sentido, transmitem-se verdades. Donde se pode concluir que a teoria de Wittgenstein implica a possibilidade de elaboração de proposições sem sentido, mas altamente significativas.

Ao afirmar que a totalidade das proposições verdadeiras é a totalidade da ciência natural, e não pertencendo essa proposição à ciência natural, pois é meta-científica, isto é, pertence à teoria sobre a ciência, Wittgenstein estaria afirmando a falsidade de sua própria posição. Donde Popper conclui que a teoria de Wittgenstein é contraditória.

O argumento de Popper implica a distinção entre contradições e paradoxos. A contradição (ou auto-contradição) é um enunciado logicamente falso. Assim, A é B e não é B. O paradoxo é um enunciado que não podemos afirmar que seja verdadeiro nem falso, sob pena de nos envolvermos em grandes dificuldades. Por exemplo, o "paradoxo do mentiroso", que pode ser formulado de muitos modos. Suponhamos que alguém diga "tudo o que digo hoje é mentira" ou, mais precisamente, "todas as proposições que hoje enuncio são falsas" e nada mais diga durante todo o dia. Se tentarmos descobrir se o que ele falou é verdade ou não, depararemos com sérias dificuldades. Se começamos com a suposição de que o que ele disse é verdadeiro, considerando o que disse, chegaremos, então, à conclusão de que a proposição é falsa. Se partirmos da suposição de que o que disse é falso, poderemos concluir, então, considerando o que ele disse, que a proposição é verdadeira.

Existem, por outro lado, proposições auto-contraditórias, que são extremamente próximas do paradoxo do mentiroso. Assim, o enunciado “a expressão X é sem sentido", onde X substitui o próprio enunciado. Essa proposição é, simplesmente, auto-contraditória e não paradoxal. E a afirmação de sua falsidade resolve o suposto paradoxo.

Da mesma forma, quando Wittgenstein descreve as condições da significação de um enunciado, por meio de uma proposição que não satisfaz essas condições, ele não está propondo um paradoxo, como acreditava, mas simplesmente enunciando uma proposição auto-contraditória ou falsa. Uma teoria que implique sua própria falta de significado não é sem significado, mas simplesmente falsa.



8.




Pode-se, ainda, argumentar que a teoria de Wittgenstein tem caráter dogmático. De fato, ao conceber como "sem sentido" os enunciados filosóficos, Wittgenstein torna sua teoria definitiva e incontestável. Pois qualquer objeção que se faça a ela será também de caráter filosófico, donde sem sentido e insensata. Coloca-se, assim, acima da possibilidade de ataque. Popper diz: “... a teoria anti-metafísica da significação, no Tractatus de Wittgenstein, longe de ajudar a combater o dogmatismo metafísico e a filosofia oracular, representa um dogmatismo reforçado, que escancara as portas ao inimigo, à insensatez metafísica profundamente significativa, e lança fora, pelas mesmas portas, o melhor amigo, isto é, a hipótese científica.” (29)

Isso tudo decorre do caráter essencialista da teoria antimetafísica de Wittgenstein. Segundo Popper, ao procurar distinguir o científico do metafísico, Wittgenstein alimenta a ingênua idéia de que existe algo que pertence essencialmente, ou por natureza, à ciência natural. E, ao definir ciência como a totalidade das proposições verdadeiras, exclui da esfera da ciência natural todas as hipóteses que não são verdadeiras. E como nunca poderemos saber se uma hipótese é ou não verdadeira, em razão de seu caráter hipotético, também nunca poderemos saber se ela pertence ou não à esfera da ciência natural. Assim, na impossibilidade de serem enquadradas no campo das ciências naturais, as teorias e as hipóteses são deixadas ao campo da metafísica.(30)



9.



Popper argumenta no sentido de demonstrar o caráter essencialista da posição aristotélica e medieval. Assim, o essencialismo aristotélico e medieval implica a idéia de que existe um substrato estável na realidade. O conhecimento verdadeiro consistiria na captação desse substrato.

Uma segunda conclusão se refere ao caráter essencialista da doutrina da intuição intelectual. Os defensores dessa doutrina, quer em sua formulação hegeliana, quer em sua versão husserliana, pretendem argumentar que a intuição é a captação imediata do conhecimento que expressa aquilo que a realidade de fato é.

Aqui se argumenta, ainda, que o nominalismo de Wittgenstein é de caráter essencialista. Wittgenstein, ao transformar as palavras em signos capazes de expressar a essência do real e ao conceituar ciência como o conjunto de proposições que podem ser verificadas empiricamente, teria assumido que existem definições "essencialistas" ou "naturais" da linguagem e da ciência.

O estudo dos caracteres das teorias essecialistas é importante para a compreensão da teoria do método em ciências sociais; pois o argumento de Popper conclui que existe uma aproximação entre as propostas de orientação essencialista e as teorias do método em ciências sociais. As teorias metodológicas essencialistas seriam extremamente favoráveis à análise de temas pertinentes às ciências sociais. “Sustenta-se que a tarefa das ciências sociais destina-se a entender e a explicar entidades sociais, como o Estado, a ação econômica, o grupo social e isso só se pode fazer por meio da penetração em suas essências.” (31) Mais adiante, Popper afirma: “A tarefa das ciências sociais é descrever clara e propriamente essas entidades sociais, quer dizer, distinguir o essencial e o acidental; mas isso requer um conhecimento de sua essência. Problemas como "que é o Estado?" e "que é o cidadão?" (que Aristóteles considerava os problemas básicos de sua Política) ou "que é crédito?" ou "qual é a diferença essencial entre os membros de uma igreja e os de uma seita ou entre a igreja e a seita?", não só são perfeitamente legítimos, se não são precisamente a classe de perguntas a cuja contestação estão destinadas as ciências sociais.” (32)

Dessa forma, a tese do essencialismo metodológico pode parecer extremamente atraente para as ciências sociais. Além do mais, seria embaraçoso falar em mudanças e desenvolvimento de alguma entidade social sem pressupor a existência de uma essência que não muda.

Assim, o essencialismo metodológico implica um profundo otimismo epistemológico, pois está baseado na idéia de que as coisas têm uma essência permanente, e que o ser humano dispõe de meios para conhecê-la. Parece, igualmente, implicar que o essencialismo metodológico é base para uma visão historicista das ciências sociais, pois as ciências sociais, argumentam os historicistas, são fundamentalmente constituídas por teorias da mudança social. E a teoria da mudança social jamais seria compreensível sem a postulação de que existe uma essência estável do real.

O essencialismo modificado, entretanto, tem outra interpretação do papel das teoria científicas. Para o essencialismo modificado. A natureza das teorias racionais, pode ser entendida considerando sua discordância em relação ao caráter essencialista das teorias expostas anteriormente. As digressões sobre o problema da significação não são somente verbalísticas e inúteis, mas, principalmente, prejudiciais. Afirmar a necessidade de definir todos os termos, antes de iniciarmos uma discussão científica, é uma idéia incoerente, pois, se nos colocássemos a discutir a significação dos termos, jamais chegaríamos a iniciar a discussão. A ciência não usa definições para determinar o conteúdo de seus termos, mas apenas para rotular utilmente as coisas e os conceitos. A discussão rigorosa tem de usar os termos realmente necessários como termos indefinidos. (33)

A significação dos termos científicos não é o elemento que fornece a validade das proposições científicas. O conteúdo das afirmações científicas não pode depender apenas da significação de seus termos. As informações da ciência não são decorrentes da definição de um termo. Essa é a forma como os cientistas superam o problema da linguagem; não se põem a discutir sobre os termos como "luz", "energia", "matéria", desde que se apliquem aos conceitos por eles empregados. Os cientistas devem, estar constantemente atentos para o caráter de vaguidade dos termos empregados em suas explicações. Eles devem estar continuamente atentos ao enunciar as sentenças, de modo que as possíveis sombras de nossos enunciados sejam perfeitamente delineadas. (34) Esse procedimento faz com que sejam diminuídas as possíveis conseqüências nefastas das imprecisões dos termos científicos.

O ponto de vista de que a precisão da ciência e da linguagem científica depende da precisão de seus termos é certamente muito plausível, mas nem por isso deixa de ser expressão de um preconceito. A precisão da linguagem depende de que tomemos cuidado em não sobrecarregar seus termos com a tarefa de serem precisos. Um termo como "duna" ou "vento" é certamente muito vago (Quantos decímetros de altura deve ter uma colina de areia para poder ser chamada "duna"? Com que velocidade deve o ar mover-se para poder ser chamado "vento"?). Contudo, para muitos dos propósitos do geólogo, esses termos são de precisão completamente suficiente; e, para outros propósitos, quando se necessita de maior grau de diferenciação, poderemos sempre dizer "dunas entre um metro e dez metros de altura" ou "vento de velocidade entre 30 e 50 quilômetros por hora". E a situação nas ciências mais exatas é análoga. Nas medidas físicas, por exemplo, sempre tomamos o cuidado de considerar o alcance em que pode haver um erro. A precisão não consiste em tentar reduzir essa margem de erro a nada, ou em pretender que não existe tal margem, mas, sim, em seu explícito reconhecimento.

A linguagem é um instrumento da ciência e o importante é o que se faz com ela. Talvez, essa teoria instrumental da linguagem possa parecer um tanto temerária. Contudo, nas ciências naturais, em que se tem empregado a linguagem de forma instrumental, a evolução do conhecimento é evidente. Por outro lado, é evidente o atraso de outras áreas do conhecimento humano (talvez isso ocorra nas ciências sociais), onde a preocupação com a precisão terminológica tem absorvido enormes esforços. Todos têm o dever de falar de forma clara e direta, mas, talvez, o exemplo das ciências naturais deva ser copiado. Seria mais proveitoso se cada um executasse seu trabalho, formulasse e discutisse as teorias sobre o mundo de tal forma que tudo quanto fosse de importância para o conhecimento não dependesse do modo como se utilizam as palavras. (35)

A questão central da teoria do método do conhecimento racional é o problema do aumento do saber, isto é, o problema do desenvolvimento do conhecimento. Sabemos que esse tipo de problema pode ser melhor entendido se analisarmos o desenvolvimento do conhecimento científico. De forma geral, as teorias do método encontram sérias dificuldades para explicar o aumento do conhecimento científico. Elas padecem do nominalismo e do essencialismo acima caracterizados. A análise racional e crítica do conhecimento científico pode nos levar a uma melhor compreensão do enigma do mundo em que vivemos e do mistério do nosso conhecimento como parte desse mundo. (36)

O objetivo da ciência é compreender o mundo, nós mesmos e nosso conhecimento, como parte desse mundo. É encontrar explicações satisfatórias para qualquer coisa que nos impressione como necessitando de explicações. (37) Na teoria do método aqui proposta, a ciência tem por objetivo produzir "explicações satisfatórias", isto é, a ciência objetiva formular a explicação causal dos fenômenos. Nesse sentido, deverá produzir um conjunto de asserções das quais uma descreve o estado da coisa a ser explicada, enquanto as outras formam a "explicação", no sentido estrito da palavra. A explicação será "satisfatória" se construída em termos de leis universais testáveis e falseáveis, e de condições iniciais. Essa explicação será tanto mais satisfatória quanto mais altamente testáveis, e mais testadas, forem essas leis.

Nessa concepção, o conhecimento científico é dinâmico e a tarefa da ciência nunca se vê totalmente realizada. O objetivo da ciência pode ser definido em termos de encontrar explicações cada vez mais satisfatórias, mais universais e de maior precisão possível, sem jamais se deparar com explicações finais. Qualquer explicação pode ser substituída por outra mais satisfatória, pois nenhuma explicação é capaz de ser uma definição essencialista do objeto. Como não se dão definições essencialistas, não se dão explicações definitivas. As explicações satisfatórias são fundamentadas em leis universais que explicam o comportamento das coisas singulares e individuais. Todavia, não se referem, como se pensa, às propriedades essenciais inerentes à própria coisa. A análise da forma como se apresentam as leis, leva-nos a entendê-las como explicações que necessitam de maiores explicações. Elas explicam as regularidades ou similaridades de todas as coisas individuais e da totalidade dos eventos singulares. (38)

Contudo, as leis não são inerentes às coisas singulares. Elas são descrições conjecturais das propriedades estruturais de nosso próprio mundo. Essa posição é identificada como "essencialismo modificado". Embora não possamos nos referir à essência final da natureza, podemos conhecer as propriedades estruturais do mundo. Podemos aprofundar-nos e saber mais sobre as coisas. Assim, cada vez que se falseia uma conjectura, isso demonstra que estamos aumentando nosso saber. Embora não sejamos capazes de saber em que grau estamos da compreensão final do mundo, a quanto estamos da verdade, somos capazes de perceber que nossas teorias, ao serem refutadas, constituem-se de proposições genuínas sobre o mundo, pois podem "chocar-se com algo". (39)


Conclusão


A ciência tem evoluído no sentido de encontrar explicações, cada vez, mais satisfatórias. É nesse sentido que a teoria do método científico pode ser considerada “essencialismo modificado" ou "realismo". Nesta maneira de conceber as teorias racionais, estas não são descrições da essência do mundo. Também não são puras representações mentais, apenas dependentes das condições de nossos raciocínios. As teorias racionais são os instrumentos com os quais pretendemos descrever aquilo que de fato o mundo é em si mesmo. Portanto, as teorias racionais são realidades condicionadas por nossa estrutura de pensamento. Dessa forma, estão sujeitas a certas leis lógicas para sua elaboração, bem como para a definição de suas condições de validade. Contudo, como pretendemos que expliquem o mundo, também estão sujeitas a certas condições determinadas pela própria realidade. Assim, a realidade pode falsear nossas teorias. A falseabilidade, embora seja uma característica lógica do sistema de enunciados que expressa as teorias racionais, é também o elemento que determina seu caráter realista. Se nossas teorias racionais podem ser falseadas, então, de alguma forma, podem referir-se à realidade. Essa é a posição "realista", na qual está baseada toda a epistemologia popperiana. “... o alvo do cientista não é descobrir uma certeza absoluta, mas descobrir teorias cada vez melhores (ou inventar holofotes cada vez mais potentes), capazes de serem submetidas a testes cada vez mais severos (conduzindo-nos, com isso, a sempre novas experiências, que iluminam para nós). Mas isso significa que essas teorias devem ser falseáveis: é pela verificação de sua falsidade que a ciência progride.” (40)



Notas e referências



1. POPPER, KARL R. Lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1975, p. 56.

2. Idem, ibidem, p. 536.

3. Idem, ibidem, p. 51.

4. Idem, ibidem, pp. 52-58.

5. E. Nagel parece concordar com a posição de que o problema do método científico é, fundamentalmente, uma questão de regras. Essas regras devem ser seguidas e respeitadas por aqueles que desejam que suas conclusões sejam consideradas científicas. Ele afirma: "Por outro lado, todas as ciências empregam um método comum em suas investigações, na medida em que utilizam os mesmos princípios de avaliação da evidência; os mesmos cânones para julgar da adequação das explicações propostas e os mesmos critérios para selecionar uma dentre várias hipóteses. Em suma, método científico é a lógica geral, tácita ou explicitamente, empregada para apreciar os méritos de uma pesquisa. Convém, portanto, imaginar o método da ciência como um conjunto de normas-padrão que devem ser satisfeitas, caso se deseje que a pesquisa seja tida como adequadamente conduzida e capaz de levar a conclusões merecedoras de adesão racional". NAGEL, ERNEST. "Ciência: Natureza e objetivo", in SIDNEY MORGENBESSER (org.) Filosofia da ciência. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1975, p. 19.

6. POPPER, KARL R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1975, p. 51.

7. Idem ibidem, p. 55.

8. Idem, ibidem, p. 51.

9. Idem, A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1974, p. 45.

10. SCIACCA, MICHELE F. História da filosofia. Vol. 1. São Paulo, Mestre Jou, 1967, p. 101.

11. POPPER, KARL R. A miséria do historicismo. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1980, p. 25.

12. Idem, A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 11. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1974, p. 19.

13. NAGEI, ERNEST. "Ciência: Natureza e objetivo", in SIDNEY MORGENBESSER (org.)
Filosofia da ciência. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1975, p. 20.

14. POPPER, KARL R. A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 11. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1974, p. 10.

15. MAGEE, BRYAN. As idéias de Popper. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1974, p. 55.

16. NAGEL, ERNEST. "Ciência: Natureza e objetivo", in SIDNEY MORGENBESSER (org.)
Filosofia da ciência. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1975, p. 17.

17. SCIACCA, MICHELE F. op. cit. Vol. 111, p. 37.

18. POPPER, KARL R. A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 11. São Paulo, Itatiaia/Edusp,
1974, p.23.

19. Idem, ibidem, p. 23.

20. DREYFUS, HUBERT. "Husserl, Heidegger and modern existentialism", in BRYAN MAGEE. The great philosophers. Londres, BBC Books, 1986, p. 256.

21. HUSSERL, EDMOND. A filosofia como ciência do rigor. Coimbra, Atlântida, 1952, p. 17. 22. POPPER, KARL R. A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 11. São Paulo, Itatiaia/Edusp,1974, pp. 302-303.

23. Idem, ibidem, p. 303.

24. Idem, ibidem, p. 308.

25. ANTUNHA, H. C. GONÇALVES. "O fundamento em educação", in O Estado de S. Paulo,7.11.76, sup. cultural, pp. 10 ss.

26. PEARS, DAVID. As idéias de Wittgenstein. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1968, p. 54.

27. POPPER, KARL R. A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 11. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1974, pp. 308-311.

28. WITTGENSTEIN, LUDWIG. TractatuS logico-philosophicus. São Paulo, Nacional/ Edusp, 1968, p. 54.

29. POPPER, KARL R. A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 11. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1974, p. 310.

30. Idem, ibidem, p. 310.

31. Idem, A miséria do historicismo. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1980, p. 26.

32. Idem, ibidem, p. 26.

33. POPPER, KARL R. Realism and the aim of science: Postscript to the logic of scientific discovery. Londres, Hutchinson, 1985, pp. 1 1 1 55.

34. POPPER, KARL R. A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 11. São Paulo, Italiaia/Edusp, 1974, p. 26.

35. BOUVERESSE, RENÉE. Karl Popper. Paris, Vrin, 1978, p. 59.

36. POPPER, KARL R. Conhecimento objetivo. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975, p. 180.

37. E. Nagel parece concordar com essa posição de Popper. Ele afirma: "É de importância primordial, entretanto, encarar esses sistemas explicativos não como corpo de conclusões fixas e indubitáveis, mas como resultados não definitivos de um contínuo processo de investigação, que envolve incessante uso de um particular método intelectual de crítica. Esse método lógico é a glória específica da ciência moderna e o alicerce espiritual de toda civilização genuinamente liberal. Nada pode substituí-lo na tarefa de atingir conclusões fundadas acerca do mundo em que os homens vivem e do lugar que nele ocupam". NAGEL, ERNEST. op. cit., p. 24.

38. POPPER, KARL R. Conhecimento objetivo. São Pauto, Italiaia/Edusp, 1975, p. 184.

39. Idem, ibidem, p. 190.

40. Idem, ibidem, p. 332.